Dona Isabel Marques da Silva viveu 25 dos seus 87 anos em uma pequena gruta em Monteiro. Na secura da região do Cariri Ocidental paraibano, onde o que brota é a vegetação mais teimosa e forte, a dureza dos anos pode ser vista na superfície do rosto de dona Zabé, que associou a ‘loca’ ao seu sobrenome. Enraizado no rosto dessa sertaneja está um sorriso faceiro, germinado facilmente – diferente de como nascem as plantas por entre as pedras do local –, regado pelo som do pífano, a típica flauta ajambrada do bambu.
Pedro Paulo Carneiro nasceu em Nova Iorque, foi registrado em Salvador, Bahia, e cresceu entre São Paulo e Rio, cidade onde vive atualmente. Jornalista e diretor de cinema e tevê, o mundo da música sempre esteve presente em seus trabalhos como Recife Beat (2007) e o E Aí Hendrix? (2010), entre outros documentários. Um naco do mundo encantado de dona Zabé chegou para ele pelo correio.
“Isso foi em 2001, eu trabalhava na TV Educativa”, relembra Pedro Paulo em entrevista para o JORNAL DA PARAÍBA, quando viu o ensaio fotográfico através das lentes de Ricardo Peixoto sobre a tocadora de pífano. “Na hora, peguei minhas milhas acumuladas e fui conhecer Zabé.”
Encantado com a figura da simpática e talentosa senhorinha, Pedro não hesitou em começar a registrar em imagens sua passagem pelo Cariri. Começava a regar a semente do documentário O Mundo Encantado de Zabé da Loca, onde cultivou um horto adubado há muito tempo pela fertilidade musical tradicional do nordestino.
“É uma identidade cultural que o Brasil desconhece e precisa conhecer por vários motivos”, alerta o diretor.
PRIMITIVISMO MODERNO
Em 2003, Pedro Paulo Carneiro colheu seu primeiro fruto: um curta-metragem enfocando a pernambucana de Buíque que viveu quase um terço em um espaço formado por uma pedra inclinada e duas paredes de taipa.
O filme em longa-metragem cria várias ramificações para fincar suas raízes no solo do universo encantado de Zabé: do trava-língua ao coco sincopado de Biliu de Campina, diplomado na universidade da música do mundo, versado em ‘forrobodologia’ do professor Jackson do Pandeiro; as ‘versalhagens’ dos poetas contemporâneos como Zé de Cazuza e Pedro Jararaca, passando pela geração passada do itabaianense Zé da Luz, que escrevia com o português correto “ai se sesse” pra rimar; até sanfoneiros e cantadores como Oliveira de Panelas, Dejinha de Monteiro e Flávio José, que ficava ao pé de um caminhão assistindo ‘aulas’ do Gonzagão.
“O que Zabé faz é pop! De tão primitivo, chega a ser moderno”, teoriza o realizador, mostrando no documentário as novas hortaliças que crescem com o maracatu, o baião, a embolada e outros ritmos que se misturam às novas tecnologias sonoras como Cabruêra, Silvério Pessoa, Totonho e Os Cabras, Burro Morto e o Chico Corrêa e Eletronic Band.
“Paraibano de coração”, não existia distância para Pedro descobrir a tradição oral nordestina, que dificilmente tem registro documentado e transpunha todas as barreiras, inclusive as divisas dos estados. “Cantei pra uma criança a cantiga que aparece no final do documentário”, diz o diretor, cantarolando-a. “Depois, a professora entrou em contato e a canção foi adotada por uma escola de classe A no Rio de Janeiro.”
SANTA ZABÉ
A primeira exibição de O Mundo Encantado de Zabé da Loca aconteceu nestas paragens, no Teatro Jansen Filho de Monteiro, no final de fevereiro. Segundo Pedro, logo após a sessão, a franzina personagem lhe abraçou com a robustidão que parecia não ter e lhe agradeceu no alto de sua simplicidade. “Não precisava mais que isso”, atestou.
Em abril, houve ainda um lançamento na capital carioca e uma estreia no festival paulista In-Edit. “A plateia ficou embasbacada e chorando no Rio”, conta, “mas em São Paulo, Zabé parecia uma santa: as pessoas queriam conhecê-la, tocá-la, como uma verdadeira pop star.”
Nos próximos meses, a obra vai ganhar os ares de Bruxelas, EUA, França e Inglaterra. De acordo com o diretor, a previsão de lançamento no circuito nacional será em outubro, através da PoliFilmes.
É a dona Zabé, que saiu da escuridão de sua loca para conduzir a trilha sonora de seu pífano para a luz da sétima arte. E além.
JPB