Com a esperança de levar água para as cidades que sofrem com os efeitos da seca, a transposição do rio São Francisco é uma das obras mais esperadas pelos moradores do semiárido brasileiro. O problema é que mesmo com a conclusão das obras da transposição, a água só pode chegar até as cidades beneficiadas caso os municípios tenham um sistema de esgotamento sanitário para fazer a coleta e tratamento de esgoto. Na Paraíba, as cidades de Princesa Isabel, no Sertão, e Barra de São Miguel, no Cariri, ainda não cumpriram este pré-requisito, e podem não receber as águas do ‘Velho Chico’.
Para acompanhar de perto a situação de várias obras que estão inacabadas, abandonadas, ou em andamento, mas com atraso de muitos anos, o G1 viajou com uma equipe da TV Cabo Branco, percorrendo aproximadamente 3 mil quilômetros durante 11 dias. Foram visitadas 21 cidades, do Litoral ao Sertão, totalizando 34 obras, divididas nas categorias de educação, saúde, saneamento básico, pavimentação, casas e apoio e bem estar e serviços.
A obra de Princesa Isabel foi iniciada em 2008, mas está parada desde 2012. O projeto inclui fazer a rede de tubulação do esgoto, a instalação de uma estação elevatória e as lagoas da estação de tratamento. Já foram gastos R$ 3,79 milhões e apenas as lagoas foram construídas. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) explica que foi executado 66% do projeto, e nos relatórios da área técnica foram constatadas irregularidades. A prefeitura foi notificada pelo órgão, que alegou não receber nenhuma resposta.
Enquanto o problema não se resolve, plantas crescem entre as placas de concreto das piscinas da estação e os moradores dependem dos carros-pipa para ter um pouco de água para usar em casa. No bairro de São Francisco, homônimo do rio que pode levar água para a cidade, o caminhão abastece uma cisterna e os moradores precisam ir buscar água em baldes.
“O caminhão vem dia sim, dia não, e a gente só tem direito a pegar dois baldes. Mesmo assim, essa água só serve pra tomar banho, pra lavar roupa, não dá pra consumir [beber ou cozinhar]. Ainda assim é melhor o sacrifício do que ficar sem água”, explica a agente de limpeza Ivonete Pereira.
O G1 tentou várias vezes entrar em contato com a prefeitura de Princesa Isabel durante as duas últimas semanas, mas não conseguimos resposta.
No município de Barra de São Miguel, o projeto é o mesmo, para construir as lagoas de decantação do esgoto, a estação elevatória e o encanamento. Da mesma forma que em Princesa Isabel, apenas as lagoas foram construídas, mas elas não estão recebendo nenhum esgoto. No local, as plantas também crescem entre o concreto, que está rachado em vários pontos.
De acordo com Antônio Aelson Canejo, secretário de Administração do município, a primeira parte da obra foi feita normalmente, mas na construção da segunda etapa, que era a estação elevatória, houve um problema judicial. “O prazo para conclusão já havia estourado e o problema aconteceu porque quando estávamos na fase de desmatar o terreno, o dono da propriedade entrou com uma ação contra a prefeitura porque o espaço onde ia ser construída a estação era particular”, disse.
O secretário explica que após tramitar na justiça, a prefeitura perdeu a ação e não pode construir conforme o projeto original. “Com isso, a situação atual é que a prefeitura precisa encontrar um novo local, fazer um novo projeto e em seguida outra licitação para só então conseguirmos continuar a obra”, concluiu Canejo.
Com todo este impasse, a população fica com a sensação de que o dinheiro está sendo jogado fora. “Perdeu-se material, a obra atual está com rachaduras e terá que ser reformada antes de inaugurar. A prefeitura acabou perdendo dinheiro com essa obra e ainda vai gastar mais para poder recuperar o que se desgastou com o tempo”, diz o artesão Emanuel Nascimento.
Abastecimento
Mas a transposição do rio São Francisco não é apenas uma das soluções apontadas que poderiam ajudar a população do semiárido a enfrentar a seca. Alternativas como a construção de poços e cisternas também são viáveis e garantem o fornecimento de água potável durante os períodos de seca. O problema é quando estas obras também ficam paralizadas.
Em Serra Branca, no Cariri do estado, dois projetos de construção de cisternas estão parados. No primeiro projeto, 170 cisternas deveriam ser construídas, mas apenas 85 foram feitas. De acordo com o coordenador do setor de cisternas da prefeitura do município, Edegledson Souza, a obra parou porque apenas R$ 225 mil de um total de R$ 450 mil foi enviado para a prefeitura. “O que veio foi construído. Como o restante não foi liberado, o período de conclusão do projeto venceu e a construtora desistiu. Agora a prefeitura está tentando resolver a situação e conseguir com a Funasa um novo orçamento para terminar”, disse.
O segundo projeto passa por um problema semelhante. Segundo Edegledson, das três parcelas de um total de R$ 550 mil, a Funasa liberou apenas duas, totalizando R$ 385 mil. Por causa disso, apenas 83% das cisternas e banheiros em residências do distrito de Sucuru foram construídas. “Era para o projeto ter terminado em junho de 2014, mas por causa da falta do repasse, o tempo de conclusão se esgotou e não teve mais como ser aditivado. A empresa prestou contas do que foi feito e o restante do recurso foi devolvido. A burocracia acaba atrapalhando muito nestas situações,” explicou o coordenador.
Segundo a Funasa, 70% do valor foi repassado para a prefeitura em abril de 2013, e deste projeto, 40 cisternas foram feitas completas, e dos 60 banheiros previstos, 40 foram feitos com 66,6% de conclusão. O órgão explicou que a vigência do termo de compromisso expirou, sem que o município solicitasse prorrogação. O termo foi encerrado com 83% de execução física e o processo está na prestação de contas para que o município esclareça os gastos dos recursos que foram repassados.
No sítio Várzea de Onça, José Pedro da Rocha e Maria do Socorro da Silva Rocha tiveram que improvisar para receber um pouco da água de um rio que passa próximo à casa deles. O casal de agricultores deveria ser beneficiado pelo projeto, mas neste caso nem o banheiro nem a cisterna foram feitos.
“O banheiro da gente é no meio do mato mesmo. Temos um espaço aqui dentro que serve só pra tomar banho mesmo. Marcaram o local onde ia ser a cisterna, os técnicos fizeram várias visitas, mas depois não veio mais ninguém aqui. Tivemos que improvisar pelo menos uma forma de ter uma água pra lavar pratos ou pra dar para os bichos”, explicou José Pedro.
A estudante Ana Milena Ferreira de Azevedo, de 12 anos, mora no sítio Boa Vista de Sucuru e lamenta a situação da casa dela, que apesar de ter uma cisterna ainda não concluída, não teve o banheiro feito. “Fizeram só o buraco no chão e foram embora. A gente fica constrangida quando chega uma visita e pede para ir no banheiro e não tem. Nunca deram uma explicação de por que parou”, disse a menina.
Na cidade de Ouro Velho, no Cariri, o problema está no atraso da construção de 16 poços em sítios da zona rural do município. Segundo os documentos apresentados pelo secretário de infraestrutura da cidade, Givaldo de Sousa, a construtora foi contratada para cavar os poços, instalar a bomba, o cata-vento, o encanamento e a instalação de uma caixa de água. Do total de poços, oito ficaram com 35% da obra concluída, dois tiveram 87% do projeto feito e seis não chegaram nem a ser cavados. Tudo está parado desde 2009.
“Como vocês presenciaram, o contrato foi feito, mas não foi bem executado. A prefeitura agora está entrando com uma ação contra a empresa para que ela retome as obras e execute o restante do que foi pago, uma vez que foi pago 50% do valor, totalizando cerca de 175 mil, e só foi executado 28%”, disse Givaldo.
Segundo o secretário, a obra começou na gestão municipal anterior e agora o projeto já encareceu. “Mesmo que a metade seja concluída, para terminar o projeto precisamos reavaliar os custos, porque o valor previsto para compra de material em 2008 é diferente dos preços praticados atualmente”, explicou.
Até a conclusão do projeto, os moradores se viram com o que podem. É o caso do agricultor Joaquim Manoel Alexandre, que mora no sítio Pantaleão 2. No local, apenas o buraco foi cavado. “Há mais de três anos deixaram parado aqui. Como tinha água, consegui um dinheiro com meu filho para instalar o resto do poço. Não era pra precisar eu ter que pagar do meu bolso pra concluir, mas eu não ia deixar a água desperdiçando”, explicou.
A Funasa esclareceu que 50% dos recursos para este projeto foram repassados em 2011, e o município executou 28%, segundo relatórios da engenharia da Fundação. O órgão ainda explica que com a mudança de gestão, não houve continuidade da obra, e um relatório técnico foi encaminhado ao setor de prestação de contas para que o município explique o que foi feito com o que foi repassado.
Voltando a Princesa Isabel, além da obra de saneamento básico parada, um projeto de instalação de três poços em sítios do município também está incompleto. O contrato é de cerca de R$ 130 mil. O dinheiro foi quase todo pago pela prefeitura, mas a construtora só perfurou dois poços, que estão fechados no momento. No terceiro, o local nem chegou a ser marcado.
“Os moradores aqui ficaram felizes, achamos que ia sair logo, mas ninguém sabe o que aconteceu. Se saísse aquele poço ali era uma mão na roda, como diz o nordestino. Eu ainda tenho um barreiro pra pegar água, mas muita gente só depende do carro-pipa, é complicado”, explica a agricultora Márcia Michele.
Toda quinta-feira pela manhã, Márcia Michele e o marido, Ivanildo Honorato, vão até uma cisterna pública onde pegam água que é deixada por um carro-pipa. Quando essa água acaba, eles vão até um barreiro que existe atrás da casa dos dois para encher um tambor que fica no local. A água desce para a casa deles através de um encanamento feito pela família. A água do barreiro é usada para lavar a casa, roupa, louça e para tomar banho, mas não serve para beber. “É água de chuva e, mesmo assim, não dura muito. Quando chega no fim do ano, se não chover, a água fica barrenta e não serve mais pra nada. Se tivesse o poço ali, ia ser um milagre na vida da gente, só sabe quem mora aqui e por enquanto só depende de chuva”, diz Márcia.
O engenheiro agrônomo Elias Borja, da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Paraíba (Emater) em Ouro Velho, analisa que a falta de assistência para os moradores do semiárido contribui para o êxodo rural. “O que vemos é só mais um exemplo de recurso mal aplicado no semiárido. É um problema geral para os moradores, para a produtividade, para o desenvolvimento da região. Sem condições dignas de viver, o agricultor vai procurar os grandes centros urbanos e isso causa um efeito dominó: as cidades ficam superlotadas, cresce o número de moradores na periferia e, consequentemente, a violência, os índices de pobreza e todos os outros problemas”, conclui.
Do G1 PB