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Arte polêmica. Ataques a museus e exposições levantam debate sobre o limite das artes

Foto: Tatiana Fortes/ O POVO

Na última quinta-feira, 19, começou a circular na internet um documento assinado por 524 artistas e intelectuais. Nomes como o escritor Milton Hatoum, o neurocientista Sidarta Ribeiro e o artista plástico Nuno Ramos subscrevem uma “carta-manifesto pela democracia” que os coloca contra “o recrudescimento da onda de ódio, intolerância e violência à livre expressão nas artes e na educação”.

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A peça enumera casos recentes de censuras e proibições a exposições e artistas, como o caso do Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre, a performance La bête, de Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, e a peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, no Sesc de Jundiaí.

No primeiro caso, algumas obras foram acusadas por grupos organizados em redes sociais, com destaque para o Movimento Brasil Livre (MBL), de promover a pedofilia e de ofender símbolos religiosos. As mesmas acusações foram feitas às demais obras.

Quando o texto dos intelectuais foi divulgado, assistíamos em Fortaleza à reverberação da polêmica envolvendo a artista plástica Simone Barreto, que teve sua obra alterada pela organização da XIX Unifor Plástica.

“Era uma obra em série. 33 cadernos dispostos lado a lado em uma vitrine, com desenhos que venho realizando pelos últimos sete anos. Quando cheguei ao local no dia da abertura (terça, 17) vi que tinham retirado meu trabalho do local onde estava e que o haviam colocado num canto escondido, para dificultar o acesso. Também cobriram um dos desenhos”, explica Simone. A ilustração em questão apresenta, em traços irregulares, a figura de duas mulheres mascaradas em ato sexual.

“Estou extremamente surpreso e pasmo diante desse fato. Imaginar que uma universidade tome uma atitude de censura é inimaginável, impossível, inadmissível”, desabafou Ivo Mesquita, curador da Unifor Plástica pela segunda vez. Um dos nomes mais requisitados do País, Ivo foi diretor artístico da Pinacoteca de São Paulo e do MAM, além de curador da Bienal de São Paulo em mais de uma ocasião.

Ele e Simone trabalharam juntos durante o processo curatorial. Os cadernos que compõem a obra, Todas as coisas dignas de serem lembradas, estão ancorados em uma ideia de arte em processo – “é a vida dela, e esse é o sentido do trabalho”, explica o curador. Quando percebeu que a obra havia sido modificada, Simone decidiu retirar todos os cadernos da exposição. “Eu não podia simplesmente virar a página do caderno, porque seria o mesmo que se virar contra esse corpo que estou representando. Não podia ser conivente”, argumenta a artista.

Naquele mesmo dia, quando Simone divulgou em suas redes sociais o que havia acontecido, um grupo de artistas decidiu protestar. Às portas da exposição, alguns ameaçavam retirar suas obras do espaço. O artista visual e fotógrafo Rafael Vilarouca, presente na exposição com um políptico de 15 imagens, participou da mobilização. “É importante que os artistas se unam e se mobilizem, que as cobranças sejam feitas coletivamente. A falta de respeito é com todos nós”, afirmou. Até o fechamento desta página, a Unifor não havia respondido as perguntas enviadas pela reportagem.

Limites da arte

Para o economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha de São Paulo e palestrante ativo do movimento liberal brasileiro, há um fosso que separa os artistas e a classe média. A arte, ao invés de aproximá-los, estaria acentuando essa distância. “A elite cultural brasileira não pode nutrir o desprezo que hoje nutre pelo povo – o povo real, não a imagem folclórica dele”, afirma.

Joel elenca elementos que fortalecem a imagem dos artistas como inimigos da sociedade – “a ignorância para com a religião, a insistência em quebrar tabus sexuais agressivamente em nome de uma agenda de transformação cultural, a condescendência com quem não partilha do mesmo mundinho fechado, a arrogância na hora de afirmar os próprios valores” – e cita artistas que, por sua popularidade, são vistos como ordinários, caso de Vik Muniz e Romero Britto.

O psicanalista Contardo Calligaris direciona o debate para o campo da sexualidade, sobretudo a feminina. “O grande representante do que é reprimido e recalcado é o desejo feminino. Em grande parte, são homens totalmente apavorados pela ideia de que exista um desejo e um corpo propriamente femininos”, argumenta ele, defendendo que “o corpo não é só objeto, mas também sujeito de resistência”.

Para a também psicanalista Alice Carneiro, pesquisadora na área de Psicanálise e Contemporaneidade, a rejeição ao sexo na arte é sintoma da instabilidade política que vivemos. “Por uma questão cultural e religiosa, somos criados na base da repressão, do pecado, do medo, e isso é projetado para um cenário político, favorece uma política de direita extremamente conservadora e reacionária”, afirma. A saída, conclui, se dá pela via do diálogo – “precisamos tirar essa certeza delirante que as pessoas estão portando em nome dos bons costumes”.

Calligaris acredita que a manutenção do tabu em relação à sexualidade vai além da disputa partidária. Julga que os partidos, afastados de escolas ideológicas e sem militância de base, são irrelevantes para a vida nacional. “A mediocridade intelectual e cultural dos políticos é tamanha que eles têm dificuldade de pensar a sua própria sexualidade. Imagina a dos outros…” Quem reprime, para ele, mata o objeto de seu próprio desejo, extingue a possibilidade da própria fantasia. “Repressão sexual é fácil, mas completamente inútil”, conclui.

O POVO Online

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