Na semana em que o Brasil começa a discutir o planejamento da reabertura econômica e social, medida provocada pela pandemia da Covid-19, tomou posse o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso. Com a missão de chefiar as próximas eleições municipais, o novo presidente chega ao cargo com a responsabilidade de auxiliar no debate do adiamento do pleito. Na sua cerimônia de posse, que também levou o ministro Luiz Edson Fachin à vice-presidência do tribunal, Barroso mencionou o desafio de um possível adiamento e descartou a unificação das eleições municipais para fazê-las coincidir com as eleições gerais. “As eleições somente devem ser adiadas se não for possível realizá-las sem risco para a saúde pública; em caso de adiamento, ele deverá ser pelo prazo mínimo inevitável”, discursou.
De acordo com Guilherme Gonçalves, advogado, professor da (UEL) e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), como a data da eleição é prevista na Constituição Federal para o primeiro e último domingo de outubro de ano par, qualquer modificação neste sentido precisa ser validada por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Para uma matéria deste formato ser aprovada no congresso, ela precisa do apoio de, pelo menos, %u2154 da Câmara dos Deputados e do Senado.
Mas segundo o especialista, a PEC não deve sofrer resistência entre os parlamentares. “Pelo que a gente tem visto nos partidos, já há uma espécie de consenso e que não é possível manter a eleição diante da impossibilidade física de aglomeração de pessoas. Ela implica nessa circunstância, sem falar na necessidade de se fazer campanha eleitoral”, explica Gonçalves, que também reforça os motivos pelos quais uma unificação de eleições municipais, estaduais e nacionais não ser considerada viável pelo presidente do TSE.
“Ela implica a necessidade de votar para sete cargos de uma vez e isso, com toda certeza, na estrutura do direito eleitoral brasileiro, provoca um colapso da justiça eleitoral. Há uma dificuldade do eleitor de ter o acesso a um debate claro sobretudo numa campanha de 45 dias. E outra coisa, imagina no horário eleitoral gratuito você ter que fazer uma eleição de vereador a presidente?” questiona.
Conforme já noticiado nesta semana, o congresso nacional estuda o adiamento das eleições municipais para os dias 15 de novembro e 6 de dezembro de 2020. Há a expectativa de que um grupo de trabalho técnico, com membros do congresso nacional e do TSE seja montado para discutir as datas e o calendário do pleito, incluindo o pós-eleição, quando o TSE precisa julgar as contas de campanha e realizar a diplomação de todos os eleitos, em todos os 5570 municípios, até o dia 1 de janeiro.
Na avaliação de Priscilla Lapa, doutora em ciência política e professora da Facho, o grande desafio político do adiamento das eleições é “fazer o que é prudente, sem gerar a interpretação de que podemos estar vulnerabilizando o processo, retirando segurança”. Segundo Priscila, o Brasil já vive um clima de insegurança jurídica há algum tempo. “A questão é criar um pacto democrático favorável para que essa mudança não fira qualquer princípio constitucional, não gere a sensação de que a medida tende a favorecer quem quer que seja”.
Ainda segundo a especialista, “as regras estão sempre sendo relativizadas dentro das narrativas políticas. Atores políticos se apropriam das regras em seus discursos, como forma de asseverar suas verdades. Assim, adiar as eleições parece inevitável, não apenas pelo dia em si em que ocorrem as votações, mas pelas etapas que antecedem o pleito, como as convenções partidárias, que acabam tendo um peso simbólico expressivo na lógica das campanhas”, concluiu.
Calendário eleitoral em mudança no mundo
Enquanto o debate sobre o adiamento das eleições municipais de outubro ainda ganha fôlego no Brasil, em todo o mundo, eleições locais e gerais marcadas para este ano, já foram adiadas por conta da pandemia da Covid-19.
Segundo dados do IDEA (Institute for Democracy and Electoral Assistance), entre os dias 21 de fevereiro e 25 de maio, pelo menos sessenta e dois países e territórios adiaram seus pleitos nacionais e subnacionais. Em dezoito desses paises, as disputadas eram de caráter nacional.
Outras democracias, no entanto, decidiram manter seus calendários. E, pelo menos vinte e seis países e territórios realizaram pleitos. Sendo onze deles nacionais. Além do Brasil, Cingapura e Libéria também estão no processo de discutir a possibilidade de adiamento das eleições.
De acordo com José Manoel, especialista em direito eleitoral e sócio do Castro Oliveira Advogados, apesar do cenário mundial já ter nos dado exemplos de que a realização de eleições durante a pandemia é tanto viável quanto inviável, cada país precisa avaliar sua situação localmente antes da decisão.
“Porque tudo vai girar em torno da fase que a pandemia estará. Se fosse hoje, provavelmente as eleições não poderiam ocorrer. Seriam adiadas. Mas a gente não sabe o cenário de outubro. Por que é que os outros países adiaram? Porque no cenário em que aqueles países se encontraram, não tinha condições de se fazer a eleição. Então nada mais justo do que adiar. Agora, a situação do Brasil é uma situação peculiar porque a gente ainda não tem esse cenário concreto”, reforça o especialista.
Na Europa, países como Alemanha, Áustria, Bósnia e Herzegovina, França, Inglaterra e Romênia, também tiveram suas eleições locais adiadas. A lista de países europeus aumenta quando também se incluem eleições presidenciais, como as do norte de Chipre e da Polônia, originalmente agendadas para 26 de abril e 10 de maio, respectivamente.
Ainda de acordo com o IDEA, na América do Sul, o Chile está entre os países que representam essa modificação do calendário eleitoral. O referendo constitucional, inicialmente previsto para o dia 26 de abril, foi adiado por seis meses. A decisão foi tomada depois que o presidente chileno, Sebastían Piñera, declarou estado de catástrofe por 90 dias. O Chile vive uma elevação de tensão desde outubro de 2019, quando uma série de protestos pedindo uma nova constituição tomaram conta do País.
Nos Estados Unidos, as eleições primárias aconteceram por meio de votação postal e os estadunidenses puderam votar enviando suas cédulas pelos correios. “A Comissão de Assistência Eleitoral dos EUA (EAS) criou uma página que inclui vários recursos de gerenciamento eleitoral (Coronavirus Covid-19 Resources) desenvolvidos para autoridades eleitorais dos EUA. EUA que estão considerando medidas de saúde e segurança, bem como votação por correspondência. O EAS também realizou uma audiência pública virtual em 22 de abril de 2020, focada na votação de ausentes e por correio”, explica o levantamento intitulado ‘Visão global do impacto do covid-19 nas eleições’, do IDEA. As eleições nacionais dos Estados Unidos, marcada para o dia 3 de novembro, ainda tem sua data mantida.
Postergação já ocorreu no Brasil
A perspectiva de adiamento das eleições por conta da pandemia de Covid-19 relembra outros momentos da história recente do Brasil onde houve suspensão ou adiamento de pleitos. De acordo com o historiador Américo Oscar Freire, professor da Fundação Getúlio Vargas, o nosso país apresenta um histórico de instabilidades políticas, mas as eleições se mantém com “certa regularidade”, apesar disso.
“A última vez que isso ocorreu foi no governo do general João Baptista Figueiredo, nas eleições municipais de 1980, que foram adiadas dois anos. Houve eleições gerais em 1982, que reuniram tanto municipais como estaduais”, conta Freire. Segundo o professor, esse adiamento ocorreu por conta do processo de anistia política, iniciado em 1979, que culminou na criação de novos partidos no país.
“O sistema político estava se ordenando novamente naquele momento e aí achou-se por bem, o governo militar e as elites políticas – que não se manifestaram de forma tão frontalmente contrária à medida -, adiar esse pleito”, explicou. “Antes, só existiam dois partidos, a Arena (Aliança Renovadora Nacional), que era a agremiação favorável ao regime militar, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Com a reformulação partidária vão ser criadas algumas novas legendas. O sucedâneo da Arena vai ser o PDS (Partido Democrático Social) e o do MDB vai ser o PDMB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro)”, disse Freire.
Naquele momento, o fortalecimento da oposição ao regime militar ainda vigente preocupou os generais, que adiaram as eleições municipais para tentar arrefecer os oposicionistas . “A oposição vai começar a se dividir, ela estava muito forte nesse momento. Havia possibilidade até do MDB vencer as próximas eleições, ameaçando a tutela militar sobre o sistema político. Nessa época, surgiram o PDT (Partido Democrático Trabalhista), de Leonel Brizola, o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), da Ivete Vargas, e o PT (Partido dos Trabalhadores), do Lula e dos sindicalistas”, relata o historiador.
Mesmo com as tensões no campo político, as eleições são frequentes na história brasileira, explica Freire. “Uma coisa que acontece é que o Brasil tem um largo histórico de eleições. Nosso país tem muita instabilidade política, tivemos sete constituições ao longo da nossa história, mas mantém um calendário regular de eleições. Essa é uma característica do nosso sistema político. Claro que há exceções, como por exemplo no Estado Novo, de Getúlio Vargas. Haveria uma eleição em 1938, inclusive presidencial, e, até 1945, Vargas permaneceu. Mas de 1945 para cá você uma certa regularidade nas eleições”, disse o professor.
“Em relação ao mandato do general Castello Branco, que foi o primeiro presidente militar desse período, eleito de forma indireta, houve um adiamento dos pleitos para cargos executivos. Mas nas eleições legislativas há uma certa regularidade. E isso é bom, o exercício do voto é sempre bom para a democracia. Mesmo no nosso último período autoritário, as eleições legislativas ocorreram. Para o Executivo, aí o regime adotou uma tutela maior, eleições indiretas, colégio eleitoral. Mas nas legislativas temos uma tradição”, concluiu Freire.
*fonte: DIÁRIO DE PERNAMBUCO