A transposição do Rio São Francisco já entrou para a história por uma série de motivos — infelizmente, quase todos eles negativos. Destinado a acabar de vez com o flagelo da seca no Nordeste, o projeto deveria ter sido entregue em 2012, mas, até hoje, não foi totalmente finalizado. A promessa inicial de custo de 4,5 bilhões de reais transbordou para estimativas atualizadas que falam em um desembolso total de 12 bilhões. O ativo político também se manteve em viés de alta, a ponto de três presidentes inaugurarem um mesmo trecho, no caso, Michel Temer, Dilma Rousseff e Lula.
A mais nova polêmica relacionada ao assunto diz respeito a quem vai pagar a conta da manutenção do sistema, estimada em 300 milhões de reais por ano. Boa parte disso se refere à energia elétrica consumida. Por uma combinação feita em 2021, ainda quando o ministro do Desenvolvimento Regional era o hoje senador Rogério Marinho (PL-RN), os estados beneficiados se comprometiam a bancar de forma progressiva esse valor, a partir de 2022. Esse escalonamento previa que o Nordeste assumisse 100% da conta no prazo de cinco anos. O contrato acabou não sendo assinado por causa dos governadores à época, que alegaram não concordar com algumas condições. Agora, os vencedores das eleições na região querem rediscutir o pacto, alegando que se encontram em situação de seca financeira para honrar o acordo nos mesmos termos. “É preciso um modelo que não impacte de maneira muito forte as pessoas que serão beneficiadas e também os cofres públicos, a ponto de comprometer a execução de outras obras”, afirma João Azevêdo, chefe do Executivo da Paraíba e líder do consórcio de governadores do Nordeste.
O assunto foi o tema de uma reunião entre os governadores dos estados beneficiados e o ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Goés, na última semana de janeiro. Pelo Consórcio do Nordeste, além de João Azevêdo, estiveram presentes Raquel Lyra (PE), Elmano de Freitas (CE) e Fátima Bezerra (RN). No encontro, os representantes formalizaram a criação de um fórum permanente para tratar do assunto, com a participação dos secretários de Recursos Hídricos de cada estado. Em paralelo, os próprios governadores têm ido periodicamente a Brasília para defender seus interesses relacionados ao imbróglio. Eles apostam no bom relacionamento com o Palácio do Planalto para empurrar para frente a conta. Fora a tucana Raquel Lyra, todos os outros governadores fazem parte da base de apoio de Lula.
Enquanto as discussões prosseguem, sobrou para o atual governo federal a responsabilidade de manter o que está funcionando e terminar de uma vez por todas o projeto. Existe ainda um esforço considerável a se fazer para dar o caso como encerrado. Há problemas em boa parte do percurso. No Ceará, o bombeamento cessou porque o estado aguarda a finalização de obras complementares. Na Paraíba, por onde passam os eixos Norte e Leste da transposição, há também trechos paralisados, à espera de trabalhos de manutenção. No Rio Grande do Norte, uma porção da estrutura prevista aguarda a finalização dos serviços de engenharia (a previsão é de conclusão apenas para 2025), enquanto a outra, embora finalizada, não entrega até o momento toda sua capacidade de distribuição de águas porque ainda é necessária a instalação de comportas e de medidores em algumas bombas.
Apesar de tantos problemas, o investimento na transposição rende votos no Nordeste e, não por acaso, o tema entrou no debate da recente campanha eleitoral ao Palácio do Planalto. Até hoje, aliás, há uma discussão entre o presidente e seu antecessor, Jair Bolsonaro, a respeito de quem é o “pai” da iniciativa. Lula afirma que os governos dele e de Dilma Rousseff entregaram quase 90% do projeto, que tem extensão de 477 quilômetros. Bolsonaro, por sua vez, gosta de lembrar o valor atualizado do investimento, insinuando que ele subiu nos governos petistas à custa da corrupção.
Esse bate-boca não ajuda a esclarecer o atraso na finalização e os buracos financeiros em aberto para garantir a manutenção de uma obra sonhada desde o século XIX, época em que se falou pela primeira vez na possibilidade de irrigar o Nordeste com ajuda do “Velho Chico”. “É preciso entender que um projeto dessa complexidade demanda tempo, inclusive para discutir em quais condições vai operar quando estiver pronto”, afirma Paulo Varella, secretário de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte. Ainda que se tente contemporizar, não há como esconder que o caso da transposição é um assombro até para os tradicionais padrões brasileiros de má gestão de dinheiro público e de escassez de planejamento.
Por Diogo Magri – Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830