Como sertanejo, que conhece um pouco a história sofrida e difícil dos conterrâneos, aliás, convivo noite e dia com os mesmos, pois moro no sertão paraibano, mostrarei um pouco como era a vida desses homens e mulheres desta região tantas vezes esquecidos, marginalizados e ignorados até o limiar do ano dois mil e três, quando novos horizontes começaram a despontar, trazendo-lhes bem-estar e dignidade.
O que vou expor é o que ouvi e ouço do povo do sertão sobre seu passado. São relatos comoventes, tristes, que falam de suas pelejas, de suas lutas renhidas, dificuldades e sacrifícios, como também da cruz da injustiça social, da humilhação e do desprezo. São histórias macabras que ficaram marcadas indelevelmente na memória dos fortes e valentes sertanejos:
-Padre Djacy, na seca de 70 a gente era humilhado, tratado com desprezo.
-Botei minha família em cima de um caminhão velho, chamado pau de arara, e fomos embora para São Paulo. Lá, a gente sofreu feito um diabo. Era tanta humilhação.
-Fui embora pra São Paulo em 68. Padre, me lembro que coloquei minha mulher e meus filhos no caminhão pau de arara. Eita sofrimento. Passamos vários dias em cima do caminhão. Não havia nenhum conforto, porque os bancos eram de madeira e tudo coberto de lona. A gente parava no meio da estrada para comer e fazer outras coisas. Quando a gente chegou São Paulo, só tinha poeira na roupa, no cabelo, no corpo e nas malas. Quanto sofrimento, meu Deus!
-Meu amigo de 2000 pra trás, sertanejo não tinha valor, era visto como bicho do mato, agente não era considerado não. A gente era ignorado pelos os homens do poder. Os políticos nos humilhavam demais.
-Em tempo de seca, eu me lembro como se fosse hoje, havia saques. As pessoas com fome saqueavam feira, escola e até hospital. A fome era grande. A gente tinha que arrumar comida pra matar a fome da família. Era a gente correndo com saco de arroz ou feijão na cabeça e a polícia correndo atrás. Eita tempo da molesta. Ave Maria!
-Padre, meu irmão morreu de acidente na estrada. Foi assim: ele foi pra feira e com os outros agricultores carregaram alimentos de umas bancas de feira. Ele botou o saco de arroz na cabeça, vinha correndo quando de repente um caminhão que vinha atropelou meu irmão. Não posso me lembrar. Meu irmão morreu carregando alimento pra matar a fome dos filhos e da mulher.
-Em tempo de seca, o governo mandava pra nós um arroz chamado buga. Era um arroz estranho, diferente, parecia com comida de passarinho. E a gente comia porque era o jeito. Mais nunca vi esse arroz na minha vida. Não sei onde o governo arrumava esse arroz pra mandar pra nós. Eita buga ruim da peste.
-Olha seu Padre, eu tenho 85 anos e não minto. Vou dizer uma coisa: eu me lembro que em tempo de seca, minha mãe fazia angu de uma raiz chamada pau mocó. Minha mãe lavava dez vezes essa raiz para tirar o amargo. A raiz amargava demais. Ainda assim, o angu ficava amargo. A gente comia porque não tinha outra coisa. Eita sofrimento, meu Deus, não posso lembrar e meus olhos ficam cheios de lágrimas. Tempo ruim.
-Na seca de 98, o governo mandava pra nós feijão tão ruim, tão duro, que não tinha fogo que desse jeito. O feijão não cozinhava não. A gente tirava do fogo e estava do mesmo jeito. O jeito era passar no liquidificador, mesmo assim ficava ruim. Esse governo nos humilhava demais.
-Uma vez, eu dei o feijão do governo pra a minha bacorinha. Ah, meu Deus, a bichinha ia morrendo de dor de barriga. Eu ia matando minha bacorinha com o feijão que o governo mandava.
-Teve uma seca grande, seu Padre, parece que foi em 83, que o governo obrigou as mulheres a trabalhar na emergência. Coitada da gente. A gente saia de madrugada para ir trabalhar. A gente trabalhava carregando carroça, fazendo comida pra os homens e tudo mais.
-Na seca dos anos 80, as mulheres trabalhavam na emergência. Era uma verdadeira humilhação. Teve mulher que ganhou neném debaixo de latadas. Meu Deus, era sofrimento demais.
-O governo obrigou as mulheres a trabalhar na emergência. Cansei de ver muitas mulheres com a barriga saindo pela boca indo trabalhar. E o governo não queria saber. Se a mulher não fosse, mesmo já pra ganhar neném, tinha o ponto cortado e não ganhava no final do mês.
-Na seca de 83, eu levava meus filhos pequenos para a emergência. Colocava meus filhos debaixo da latada, pegava uma carroça e ia carregar terra e fazer mais outras coisas, que eram serviço de homens. Padre, a gente já foi tão humilhada por esses governantes. Eles não tinham pena de nós. A gente era tratada de forma tão humilhada, que quando me lembro, dá vontade de chorar.
-As pragas dos políticos tiravam proveito da nossa fome e sede. Pareciam urubus em cima de carniça. Essa gente de gravata e paletó não queria saber do nosso sofrimento, mas sim do nosso voto. Para eles, o que valia não era a pessoa do sertanejo, mas o seu voto.
-Os sertanejos quando chegavam em S.-Paulo, o povo de lá dizia logo: chegaram os flagelados da seca. Eita humilhação!
-Nos tempos antigos, nosso transporte era o jumento. E não era todo mundo que podia comprar um jumento. Esse animal ajudou muito a nós. Coitado do bichinho, só vivia pra trabalhar noite e dia.
-Naquele tempo, quem queria estudar, ia pra escola ou a pé ou montado no jumento. Era muito difícil para pobre estudar. Só rico ia pra capital estudar pra se formar. Pobre só existia pra trabalhar pro patrão.
-Naquele tempo, pobre não se formava pra doutor. Não ia pra capital ou cidade grande pra estudar. Que nada! Isso era coisa das famílias importantes do sertão.
-Eu queria estudar, mas meu pai não tinha dinheiro pra comprar os cadernos, a farda, sapato. Tudo era difícil para o pobre estudar.
-Eu me lembro que quando uma pessoa da família adoecia, o pai ou mãe ia se humilhar no pé do prefeito ou do vereador. O pai pedia para o prefeito arrumar uma ambulância para levar o doente pra o hospital.
-Uma vez, me lembro como hoje, minha mulher ia ganhar menino, fui até a casa do vereador e disse assim: vereador, pelo o amor de Deus, minha mulher vai ganhar menino, me arrume a ambulância. Sabe o que ele me disse? Vou arrumar a ambulância ou outro carro, agora você vai assumir o compromisso de votar em mim. Eu disse: sim, toda minha família vai votar no senhor. Foi assim que consegui levar minha mulher pro hospital. Pobre, naquele tempo, sofria e era humilhado pelos políticos.
-Nos tempos passados, o governo nem ligava para a saúde do povo do sertão. Era difícil ver um médico. A gente andava seis léguas ou mais em busca de médico. Muita gente morria em casa porque não tinha assistência médica. O pobre quando adoecia, podia chamar logo o padre.
-O sertanejo que morava no sitio, quando adoecia era levado numa rede para a cidade. As pessoas andavam muitas léguas com o doente na rede. E quando chegava na rua, ainda ia se humilhar na casa do prefeito ou do patrão. Choro só em lembrar desse tempo. Era muita humilhação. Era demais, Deus me livre.
-De mil, tirava um que se formava pra doutor. Era muito difícil. Parece que o governo só privilegiava os filhos de ricos.
-Antigamente, os filhos de pobres já nasciam sabendo de uma coisa: ser agricultor. Nasciam na roça, viviam na roça e morriam na Roça. Esse era o destino dos filhos de pobres.
-No meu tempo, a casa do sertanejo era de taipa, quase caindo, no tempo de inverno, a nossa casa parecia uma peneira. Coitada da minha mulher, corria pra lá e pra cá, colocando pano na rede dos filhos pra não molhar os meninos. Era sofrimento demais.
-Roupa, calçados, a gente só comprava uma vez no ano, quando catava e vendia o algodão. Eu lembro que o pano mais vendido era o tergal e o volta ao mundo. Era uma roupa pra cada um. A gente comprava o pano na feira e mandava fazer as camisas e as calças.
-Seu Padre, pobre aqui no sertão só via a cor do dinheiro quando vendia o algodão. Era quando a gente pegava num dinheirinho.
-O pai selava o animal e ia pra feira. Na feiram, comprava bolacha, farinha, rapadura, açúcar e café. Quando chegava em casa era uma festa. Esse negócio de verdura não existia. Só rico comia verdura.
-Padre, eu vim conhecer o que era maçã e uva depois de velho. No meu tempo, ninguém sabia o que era isso.
-Eu não tenho vergonha em dizer que passei muita fome. Lá em casa, Padre Djacy, eram 11 pessoas. Me lembro que chegava a hora do almoço e não tinha nada pra comer. Minha mãe ficava desesperada. Estou chorando só em lembrar desse tempo. Ah, meu Deus, que tempo ruim!
-Seu Padre, naquele tempo, mulher quando se casava, o primeiro presente que recebia era um moinho pra moer milho. Todo dia a mulher moía milho. Começava pela manhã e ia até à noite. O moinho era pesado demais.
-A mulher nos anos atrás moía milho, pisava arroz, pisava sal, carregava lata d’água na cabeça, cuidava da casa, do marido e dos filhos. A mulher era pau pra toda obra.
-Antigamente, a mulher ganhava menino era em casa. Quando chegava a hora de ganhar o menino ou menina, o marido montava num jumento e ia atrás da parteira. Quando ela chegava a mulher já estava quase morta de tanta dor. E a parteira tinha mãos santas. Tudo dava certo. O bebê não morria e a mulher também não. Era coisa de Deus. Todos meus filhos nasceram em casa, nas mãos da parteira. Essa mulher era uma santa.
-Em tempo de eleição, a gente era muito humilhado pelo patrão. Ele chegava na nossa casa e diz assim: todos vocês estão obrigados a votar no meu candidato. Se não votarem, vocês vão se arrepender. E a gente tinha que votar no candidato do patrão, assim era mandado embora. Quem era doido de votar contra.
-Os sertanejos naquele tempo eram como escravos. Viviam trabalhando pra o patrão e ainda eram obrigados a votar no candidato do patrão. A gente era humilhado demais. A gente vivia trabalhando no duro pra o patrão.
-Antigamente, seu Padre, quem mandava na gente era o patrão. A gente era escravo do patrão. A gente obedecia em tudo o chefe, ou seja, o coronel.
-Os filhos do patrão estudavam e se formavam, enquanto nossos filhos não tinham esse direito. O futuro do filho do patrão era ser doutor, o futuro do filho dos pais pobres era a roça. Coitado, crescia e morria na roça. A caneta do filho de pobre era a enxada. Eita sofrimento, meu Deus!
-As coisas no passado eram tudo difícil. Na casa do pobre não tinha geladeira, fogão de gás, nem fogão de carvão. Isso era coisa de rico. Só na casa do rico tinha isso. Cansei de passar o dia todo soprando o fogo. Toda hora eu tava soprando o fogo. Minha cara ficava cheia de fumaça. É por isso que as mulheres num instante ficavam velhas.
-Carreguei muito pau de lenha nas costas. Eu passava o dia na roça e quando voltava, voltava cansado, suado, ainda trazia um bocado de pau de lenha nas costas. Meus ombros ficavam cheios de calos. Era o jeito.
-Pobre não comprava nem carro nem moto. Pobre só mesmo o direito de possuir um ou dois jumentos. O jumento era o transporte do pobre. Até pra ir pra missa, a gente ia montado no jumento. E não era todo pobre que podia comprar um jumento. A coisa era difícil pro lado do pobre.
-Remédio naquele tempo era luxo, era coisa de rico. Pobre não tinha condição de comprar remédio. Tudo era muito caro. O remédio de pobre era raiz de pau pra fazer chá.
-Quando o pobre ia viajar, ele ia de pau de arara. Passava semanas mais semanas em cima daquele caminhão levando poeira na cara.
-Padre Djacy, no tempo passado, pobre só via avião quando passava no céu. A gente corria pra o terreiro pra ver o bicho passar. A gente via o avião bem pequeninho. Era uma coisinha lá no céu. O povo ficava admirado e às vezes até com medo daquele bicho. Tinha gente que dizia que coisa do outro mundo. Uma vez minha tia ficou com tanto medo do avião que se escondeu debaixo da cama. Coitada dela!
-Uma vez, a gente tava almoçando quando ouvimos a zuada do avião. Todo mundo deixou o prato pra ver o avião passar. A gente ficava admirado vendo aquele avião voar.
-Antigamente, quando o marido ia pra São Paulo, a mulher passava mês e mais mês esperando notícia. Meu marido colocava uma carta no correio e eu só ia receber a carta com um mês ou mais. Pra saber noticia do marido era difícil. Eita tempo ruim, meu Deus!
-Antigamente pobre não sabia o que era perfume. Isso era coisa de rico. A gente usava mesmo era outra coisa, sei lá o que era.
-Naquele tempo, o que mais a gente desejava era sair da miséria, do sofrimento, do abandono. A gente sonhava que um dia o sertanejo pudesse viver melhor, com mais dignidade. Fosse tratado como gente, como cidadão, e não como cassaco ou flagelado que só servia mesmo pra votar no patrão.
-Padre Djacy, era como Luiz Gonzaga cantava, e era verdade: “faz pena o nortista, tão forte e tão bravo, viver como escravo no norte e no sul”. Ele tinha razão. Graças a Deus, de 2003 pra cá, as coisas mudaram muito, e pra melhor. Obrigado, meu Deus! Obrigado, Frei Damião! Obrigado, meu padim cíço Romão!
Os anos passaram e a realidade também. Hoje, os sertanejos, com ar de felicidade, entusiasmados e admirados com o presente, contam uma nova história de vida marcada por cidadania, justiça e dignidade.
E será no próximo artigo que veremos esse novo contraste sócio-político-econômico e cultural. Aguardem!
Padre Djacy Brasileiro, em 15 de agosto de 2014.
e-mail: [email protected]
Twitter: @Padredjacy.