Alternativas e possibilidades político-pedagógicas e metodológicas de Cultura de Paz e Educação para a Paz, na perspectiva da Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos
Por: Giovanny de Sousa Lima
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer, individualmente, descobertas “originais”; significa também e, sobretudo, difundir, criticamente, verdades já descobertas, socializá-las, por assim dizer e, portanto, transformá-las em bases de ações vitais, em elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral. (Antônio Gramsci)
As formulações e consequentes apresentações das pistas e possibilidades para efetivação da Cultura de Paz, correlacionadas a Direitos Humanos & para os Direitos Humanos, contidas no presente artigo, não tem a pretensão, em hipótese alguma, de constituírem-se em formas repletas de fórmulas, receituários, aglomerados de “dicas”, modelos. Até mesmo porque não comungamos com a percepção e o entendimento de que assim procedendo estaríamos contribuindo, de forma coerente, para um qualitativo pensar-fazer educacional, cultural e consequente modificação de ações, atitudes e valores de nossos educandos. Pois, pensar-fazer educação e cultura importa e comporta, fundamentalmente, a adoção de posturas, práticas sociais e metodológicas que são o avesso de procedimentos assistemáticos.
Advogamos o trabalho político-pedagógico de Cultura de Paz e Educação para a paz, fundado em necessárias conexões com a Pedagogia Progressista e a Educação em Direitos Humanos e para Direitos Humanos, como condição essencial para a edificação de ações, atitudes e valores realmente democráticos, propiciadores das mudanças e transformações geradoras de rupturas e soluções das inúmeras adversidades que afetam, direta e indiretamente, a vida, acima de tudo, dos nossos educandos negros, mulheres, índios, LGBTs e pobres em geral, geralmente objetos de violências e violações dos seus direitos. Estar atento, sensível e comprometido totalmente com os direitos e múltiplas necessidades de tais setores deve constituir-se mais do que um dever formal de todo e qualquer educador. Ressaltando-se ainda o imenso valor da Educação em Direitos Humanos, destacamos:
A Educação em Direitos Humanos concebe uma escola viva e dinâmica, com práticas educacionais que estimulam a participação de toda a comunidade escolar no seu destino e que legitima em processos participativos. Assim como por acreditarmos ser necessário estar em sintonia com uma educação dialógica como meio para a construção da cidadania, viabilizando um trabalho “com” os envolvidos e não somente “sobre” eles. (Brasil, 2013, p. 51).
Verifica-se, como já foi elucidado anteriormente no corpo deste trabalho, que a Cultura de Paz e Educação para a paz, através dos seus princípios e fundamentos teórico-práticos não se dissociam da Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos. A proposta metodológica para se trabalhar a Educação em Direitos Humanos na Educação Básica implica, necessariamente, na construção de um Projeto Político-Pedagógico em que todos os membros da comunidade escolar sejam, realmente, protagonistas desta ação. Somente assim poderá existir legitimidade e validade educativa e cultural no processo.
A Educação em Direitos Humanos não é uma educação qualquer, pois não é feita com dissociações entre o político/educativo, teoria/prática. Não está esvaziada dos valores fundamentais: políticos, econômicos, sociais, estéticos, éticos, propiciadores da autonomia dos educandos. Alimenta-se de belos, estratégicos e necessários paradigmas contra hegemônicos, favorecedores da qualificação, democratização, do processo de ensino-aprendizagem. Precisa ser, portanto, compreendida na sua plenitude, principalmente pelos trabalhadores da Educação, para que possa ser viabilizada e cumprir suas finalidades e objetivos relevantes, contribuindo, inclusive, para climas organizacionais escolares onde não haja lugar, em momento algum, para a produção e reprodução de preconceitos e discriminações, fabricação e disseminação de estereótipos, e geração de quaisquer injustiças.
O trabalho de Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos implica ainda uma importante necessidade de compreensão por parte, principalmente, dos trabalhadores em Educação, da noção de vítima, conforme nos revela com pertinência Carbonari (2007, p. 170), ao afirmar:
A violação dos Direitos Humanos produz vítimas. Vítimas são aquelas pessoas humanas que sofrem qualquer tipo de apequenamento ou de negação do seu ser humano, de seu ser ético. Em termos ético-filosóficos, vítima é aquele ser que está numa situação na qual é inviabilizada a possibilidade de produção e reprodução de sua vida material, de sua corporeidade, de sua identidade cultural e social, de sua participação política e de sua expressão como pessoa, enfim, da vivência de seu ser sujeito de direitos. À luz dos Direitos Humanos, vítima é um ser de dignidade e direitos, cuja realização é negada (no todo ou em parte). É, portanto, agente (ativo) que sofre (passivamente) violação.
É muito importante, portanto, que seja incorporado às práticas político-pedagógicas a compreensão transparente da noção de vítimas como sujeitos de direitos e de dignidade, objetos de violação. A não adoção de tal procedimento termina por suscitar, em vez da prática social anteriormente citada, a implementação de ações assistemáticas ou assistencialistas em relação à vítima, esvaziando-se, completamente, as possibilidades fecundas do ato educativo. Sequenciando essa linha de raciocínio, Carbonari (2007, p. 184), de modo bastante transparente e pertinente, ainda nos orienta, afirmando que:
(…) Propor-se a pensar e a fazer Educação em Direitos Humanos é muito mais do que dar vazão para uma coleção de boas intenções e a mobilização de boas vontades – por mais que sejam necessárias. Exige encetar a novidade como compromisso ético, social e político capaz de se traduzir em práticas alternativas e transformadoras, que se consolidem tanto em normais exteriores e institucionais, quanto em convencimento e vivência. Isso não significa que a Educação em Direitos Humanos, por si seja capaz de promover todas as necessárias transformações na cultura; significa apenas que, sem que seja transformadora, perderá seu sentido e pode ser perfeitamente dispensada.
Através de tais enunciados fica evidente que apenas a assimilação e manifestações de desejos, interesses e aspirações para a realização da Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, não é suficiente para sua correta efetivação. Necessário se faz a adoção de metodologia eficiente, eficaz e democrática, compatibilizada com a ética e compromisso político explícito com as necessárias mudanças e transformações favorecedoras da libertação dos oprimidos, explorados e injustiçados. Ou seja, das vítimas de os matizes. E tudo isso implica também a não dissociação da teoria-prática educacional/cultural, realmente humanizadora, conscientizadora e transformadora.
Compreende-se que a passagem do senso comum para bom senso dos nossos educandos pode, perfeitamente, se materializar quando do emprego correto da metodologia da Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos. Isso implica numa multiplicidade de fatores, entre os quais: uma compreensão profunda por parte, acima de tudo do docente, da totalidade da realidade no qual estão inseridos: ele e os educandos; do conhecimento do processo histórico no qual foram forjadas suas identidades; da dinâmica e lógica perversa do capitalismo vigente, suas contradições e implicações no pensar-fazer educativo; da constituição e materialidade dos meios de comunicação de massa, e suas influências geralmente nefastas nas mentes, corações e comportamentos de nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos; e da possibilidade, propositiva, de uma outra sociedade, onde a diversidade cultural, a liberdade, a dignidade e os Direitos Humanos possam ser plenamente respeitados e vivenciados. São práticas sociais que não podem ser desprezadas pelos educadores.
A adoção, portanto, de uma prática literalmente progressista, compatibilizada por métodos e técnicas de ensino, e instrumentos com os quais nossas crianças, adolescentes e jovens estejam mais familiarizados, traduzem-se como recursos e/ou componentes facilitadores de aprendizagens significativas, democráticas, contextualizadas, transparentes, capazes de gerar rupturas com os processos de alienação engendrados pela indústria cultural e a ideologia das classes dominantes.
Já Benevides (2007, p. 346), enfatizando os Direitos Humanos e os seus desafios para o século XXI, dizendo das relações entre Direitos Humanos e Educação, explicita:
A Educação em Direitos Humanos parte de três pontos. Primeiro, é a educação permanente, continuada e global. Segundo, está voltada para a mudança cultural. Terceiro, é educação em valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, ou seja, não se trata de mera transmissão de conhecimentos. Deve abranger, igualmente, educadores e educandos. É a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana, através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Isso significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.
Operacionalizar-se uma Educação desta magnitude, implica, necessariamente, em prática político-educativa consubstanciada integralmente por valores democráticos, respeito integral a dignidade da pessoa humana, opção possível por processos de formação que tenham como suporte a conscientização, o diálogo e a amorosidade para com todos os educandos, permanentemente. Implica ainda na percepção necessária de que é perfeitamente possível o enfrentamento e superação das deformações, mazelas e contradições da sociedade vigente, e a criação de um outro mundo possível, onde as relações entre os indivíduos possam, na sua plenitude, ser pautadas pela solidariedade, fraternidade, amizade, cooperação e todos os demais valores essenciais para uma excelente convivência humana.
Entre outras possibilidades, na perspectiva que estamos problematizando, sugerimos ainda como louváveis e estratégicos para efetivação da Cultura de Paz e Educação para a paz no contexto escolar, a incorporação dos seguintes recursos e mecanismos: planejamento estratégico situacional da instituição escolar; promoção – compartilhada pelos trabalhadores da escola – de seminários bimestrais, rodas de diálogo transversais e interdisciplinares entre educadores e educandos; desenvolvimento de simpósios; realização de exposições iconográficas; projeções frequentes de documentários educativos e culturais, e consequentes debates dos seus conteúdos; estímulo e motivação aos educandos pra visita a sede de instituições e entidades, como por exemplo ONGs que trabalham direta ou indiretamente com a temática; capacitação contínua dos especialistas em Educação e docentes em mediação de conflitos e justiça restaurativa, no espaço escolar e extraescolar; fortalecimento real da autonomia dos grêmios estudantis, conselhos de classe e conselhos escolares; adoção da transversalidade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e intersetorialidade.
Sem Educação, e Pedagogia amplamente sistematizada, democrática e contextualizada, contemplando, inclusive, as disparidades econômicas regionais, as imensas desigualdades sociais, a dinâmica e lógica perversa do sistema capitalista vigente, os conteúdos das relações sociais que se processam no cotidiano escolar, as contradições e precariedades inerentes ao processo de ensino vigente, as violências e violações dos Direitos Humanos no Brasil, que se abatem sobre as camadas populares e minorias sociais, não tem valor e fidedignidade alguma na operacionalização da Cultura de Paz e Educação para a Paz em nenhuma instituição escolar ou extraescolar.
É fundamental destacarmos ainda a essencialidade de se operacionalizar a Cultura de Paz e Educação para a Paz tendo em vista, obviamente, a educação das relações étnico-raciais no Brasil e o consequente trabalho com histórias e culturas africanas e afro brasileiras em sala de aula; o desenvolvimento de planejadas, sistematizadas e democráticas ações pedagógicas, que assegurem não apenas ensinamentos, mas mudanças de atitudes e comportamentos em relação a todos os membros que integram a comunidade LGBT, que impliquem em efetivo respeito aos direitos de tais setores, bem como das mulheres, em geral, dos povos indígenas e pessoas com limitações de ordem física ou mental, e demais minorias sociais que existe e se fazem representar dentro e fora dos espaços escolares em nossa sociedade.
Considerações finais
A construção possível, teórico-prática, da Cultura de Paz e Educação para a Paz, principalmente se correlacionada efetivamente aos paradigmas da Pedagogia Progressista e Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, conforme observado nos estudos e pesquisas efetivadas por vários educadores, elencados neste artigo, é perfeitamente viável, louvável e, acima de tudo, essencial, principalmente no contexto de uma sociedade como a nossa, marcada por múltiplas violências, com implicações cotidianas na realidade escolar.
A implementação da Cultura de Paz e Educação para a Paz, enquanto construção político-pedagógica, coletiva, participativa e democrática, efetivada, inclusive, a partir do conhecimento amplo de todos os elementos que envolvem a instituição escolar, inclusive a sua teia de relações, cria possibilidades e condições mais adequadas, coerentes e eficientes para materialização de um processo ensino-aprendizagem mais qualitativo e humanizador, por levar em consideração a dimensão integral do ser humano.
O trabalho de sistematização e desenvolvimento da Cultura de Paz é um desafio educativo, cultural e político, pois implica um pensar-fazer democrático, dialógico, reflexivo-crítico, transformador, vivenciado com os educandos, pais e demais membros da comunidade escolar, objetivando promover a construção de ações político-pedagógicas, correlacionadas com os conteúdos, temas, ações, atitudes e valores inerentes à Cultura de Paz e Educação para a Paz, visando o equacionamento dos conflitos e violências no espaço escolar e para além dele.
Isso só é operacionalizado para uma mudança da realidade adversa à vida de inúmeros sujeitos, com a clareza permanente de que defender, proteger, promover e vivenciar a paz, não significa a ausência de conflitos. Os quais, de forma político-pedagógica, precisam ser trabalhados e equacionados, para que, inclusive, o clima organizacional/funcional escolar possa ser balizado pelos valores da solidariedade, tolerância, respeito à diversidade, equidade, entre outros, os quais foram enfatizados no corpo deste trabalho.
A consolidação, portanto, de uma Cultura de Paz através de práticas educativas sistematizadas, progressistas e democráticas reveste-se não apenas de utilidade e importância, mas de fidedignidade e necessidade diante da heterogeneidade de problemas, principalmente sociais, que envolvem a sociedade e a instituição escolar, cotidianamente, de forma direta e indireta. Recursos, instrumentos, metodologias e estratégias para efetivação concreta da Cultura de Paz estão contidos em seus paradigmas e nas suas correlações com a Pedagogia Progressista, Filosofia da Educação, Sociologia da Educação e Educação em Direitos Humanos, bem como nos documentos e tratados internacionais sobre a paz.
A Cultura de Paz se revela, portanto, um instrumento importante para a prevenção das violências no espaço escolar, criando situações e condições para o seu enfrentamento e superação, se efetivamente compreendida, assimilada, incorporada e praticada à gestão educacional e administrativa, ao Projeto Político Pedagógico, ao currículo escolar, ao processo de avaliação formativo e democrático, enfim, à vida real e cotidiana da unidade escolar. Como compromisso e responsabilidade política-pedagógica, ética, moral, humanizadora, conscientizadora, libertadora, a partir dos gestores escolares, especialistas em Educação e docentes, do trabalho que realizam, com o mundo no qual estão inseridos e, por extensão, com os educandos.
Efetivar Cultura de Paz e Educação para a Paz, necessariamente, implica ainda optar por concepções progressistas, educacionais e culturais, desenvolvimento de práticas sociais com rigor científico, tendo no diálogo e na luta permanente pela defesa, proteção e promoção dos Direitos Humanos, os elementos mais importantes e essenciais para as relações com os outros.
Enfim, a Cultura de Paz é um atributo importante também para a democratização escolar, do próprio conhecimento, evolução do patrimônio educacional, cultural, político e científico de educadores e educandos. Traz no seu bojo um conjunto de valores decisivos para a boa convivência e coesão social. Além disso, é potencialmente humanizadora e capaz de ressignificar comportamentos, pela aprendizagem e adoção de novos valores, ações e atitudes dos indivíduos para consigo mesmos, para com o mundo e nas suas relações com outros indivíduos.
Para operacionalização político-pedagógica da Cultura de Paz e Educação para a Paz é imprescindível que não nos esqueçamos de adotar, concretamente, os princípios da transversalidade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e também intersetorialidade, considerando-se, acima de tudo, em relação a esse último, que a instituição escolar, configurada como uma das maios importantes da história da humanidade, não está dissociada da macro estrutura econômica, política e social mundial, nacional, regional e local. Embasado em tais princípios e alicerçado na promoção da cidadania, mediação de conflitos, fundamentos e metodologias de Educação em Direitos Humanos, no paradigma da paz preconizado pelos seus expoentes máximos, ganhadores do Nobel da Paz, e nos arcabouços teóricos da Pedagogia Progressista, se revela possível a construção de novos relacionamentos, relações sociais, na perspectiva da promoção dos sujeitos e construção de uma nova sociedade, onde a igualdade, justiça, cooperação, ética e dignidade da pessoal, possa ser efetivada na plenitude.
Assim, a Cultura de Paz deve constituir-se em ampla e relevante alternativa político-pedagógica e educativa para a melhoria, inclusive, do processo ensino-aprendizagem e da qualidade da Educação. Sendo essa, indubitavelmente, uma das maiores, mais belas, importantes e fidedignas alternativas para a promoção das mudanças e transformações as quais tanto almejamos.
Referências
BENEVIDES, Maria Victoria. Direitos Humanos: desafios para o século XXI. In: Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
BRASIL. Educação em Direitos Humanos: diretrizes nacionais. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília: [s.n.], 2013.
CARBONARI, Paulo César. Sujeito de direitos: questões abertas e em construção. In: Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere, civilização Brasileira. Vol. 1. Rio de Janeiro: [s.n.], 1999.
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Giovanny de Sousa Lima — Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); especialista em Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, também pela UFPB; psicólogo educacional; pedagogo; professor do Ensino Médio e do Ensino Superior em instituições da rede privada de João Pessoa, nas últimas três décadas; e ex-professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).Também é escritor e radialista.