Cuidado, o inimigo vem aí!

“O rico recente, a classe média burra, atrasada, sem sonho e sem projeto já se anunciam em ‘Ouro de tolo’. O tolo que vê o ouro em suas conquistas mesquinhas.”
Elri Bandeira

Começo o texto com uma frase do amigo e professor Elri Bandeira por ver nela traduzido o vivo retrato da sociedade brasileira contemporânea. Isso 50 anos depois do grito tarzânico de Raul Seixas denunciando a hipocrisia enrustida nos Al Capones e tolos de plantão que ainda não se emendaram.

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Era 1973 e Emilio Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos presidentes da ditadura militar, recebia nos ouvidos o grito do “Krig-ha bandolo!”. Mas, nem ele, nem os demais ouvintes se deram conta do que se registrava, naquele ano, na história da música popular brasileira. Em julho o lançamento do álbum primal de Raul Seixas chegava nas lojas, já alavancado pelo compacto com “Ouro de tolo” e “A hora do trem passar”, lançado em maio do mesmo ano. O Brasil, que minava o sangue dos contrários ao regime, acabara de receber uma trilha sonora para os revoltados.

Um jovem baiano e magricela, gravara para o presente e o futuro um dos mais originais LPs já prensados pelo mercado fonográfico brasileiro. O álbum de estreia veio com 11 faixas, cinco das quais compostas em parceria com seu “inimigo íntimo” Paulo Coêlho (Al Capone, A hora do trem passar, As minas do rei Salomão, Cachoro urubu e Rockixe). Daquele ponto em diante Raul Seixas viria a se tornar um ídolo na mais precisa acepção do termo.

O deboche, a acidez, a ironia e a crítica social marcariam doravante os passos na metamorfose ambulante que segue por décadas. O magrelo que penteava o cabelo para cima, arregaçava as golas das camisas e usava jaquetas ao estilo James Dean, iniava um processo de perturbação musical que já dura 50 anos. É a “mosca na sopa” musical dos brasileiros.

Logo de chegada o produtor do disco junto a Raul, Marco Mazzola, relata que “de repente, ele tirou o paletó, a gravata, penteou o cabelo pra trás, encarnou o Elvis e começou a cantar Let me sing, let me sing, com todos aqueles trejeitos dele. Eu fiquei de cara com aquilo. Na hora, entrei na sala do Roberto Menescal e disse: ‘a gente tem um grande artista ali fora, que a gente tem que contratar de qualquer jeito! Eu produzo o cara. Mas a gente não pode perdê-lo’”. E assim se fez de Raulzito o Raul Seixas e de “Krig-ha bandolo!” uma icônica obra musical.

Com uma imagem onde figura nu, de braços erguidos e a chave da sociedade alternativa estampada na palma da mão direita, “Krig-ha bandolo” se firma como uma das mais simbólica e enigmática capas de disco da nossa história musical. O título “Krig-ha, bandolo!” é um grito na lingua do Tarzan das HQs e significa Cuidado, o inimigo vem aí!”. Um inimigo que, para além das qualidades intrínsecas da produção musical, tem mantido a sua capacidade de resistir ao tempo e, com o passar dos anos, está cada vez mais jovem, presente e relevante nas letras e nas reflexões que propõe.

Por fim, decifremos “How Could I Know” e em suas palavras a importuna filosofia de Raul: Como eu poderia saber que iria tocar fogo em tudo isso? Já faz muito tempo desde que o último rebelde se foi. Quem sabe você não será o próximo a entrar para a história?

Em 2023 comemoramos o cinquentenário de uma obra transcedente, que foi se complementando até o dia em que o disco voador levou o Maluco Beleza e nós ficamos a gritar em todos os botecos, bares e tertulias: Toca Raul !

Francisco Jarismar de Oliveira (Mazinho)  — Mestre em Ensino pela UERN. Licenciado em História pela UFCG; Especialista em Informática em Educação pela UFLA e Servidor Público Federal do IFPB.