A democracia e o País que merecemos, precisamos e temos direito
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
Morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal,
Aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
(Eduardo Galeano – O Livro dos Abraços)
O presente artigo não tem o objetivo de dar conta integralmente de tão amplo, pluralista e relevante tema. Senão, apresentar pistas, problematizadoras e horizontes para uma reflexão crítica sobre a democracia e o País que merecemos, precisamos e temos direito.
Conforme BOBBIO (1999), na teoria política contemporânea, mas em prevalência nos países de tradição democrático-liberal, as definições de democracia tendem a resolver-se e esgotar-se num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como também se diz, de ‘procedimentos universais’. Entre estas: 1) O órgão político máximo, a quem assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau; 2) Junto do Supremo Órgão do Legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local, ou chefe de estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) Todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de senso, e, possivelmente, de sexo, devem ser eleitores; 4) Todos os eleitores devem ter voto igual; 5) Todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada, o mais livremente possível. Isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) Devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condições de reais alternativas, o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada; 7) Tanto para as eleições de representantes como para as decisões do órgão político vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria, segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) Nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) O órgão do governo deve gozar de confiança do parlamento, ou do chefe do Poder Executivo, por sua vez, eleito pelo povo. Como se vê, todas essas regras estabelecem como se deve chegar à decisão política e não o que decidir.
É preciso que o leitor considere a relevância de tais pressupostos. Todavia, tendo o devido cuidado para referenciar os fundamentos ou constituição da democracia no Brasil e seus desdobramentos, tendo como base a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, e a legislação eleitoral vigente para todo o País.
Por sua vez, CHAUI (2012), com bastante propriedade, externa que devemos estar atentos para o valor, importância e necessidade da democracia para além de suas abordagens clássicas, tendo a compreensão das contradições da existência da democracia dentro de uma sociedade capitalista, caracterizada por profundos antagonismos entre classes sociais. A eficiência e eficácia de uma democracia não pode e nem deve ser referendada a partir apenas de critérios como a existência dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), eleições e voto livre, direto e secreto, entre outros conteúdos, que caracterizam a democracia burguesa liberal, que há no Brasil.
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada ―livre iniciativa‖ e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que a noção de regime da lei e da ordem indica que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, significa que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo, por meio da repressão e da censura, sua explicitação e desenvolvimento; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, ou a afirmação de que a democracia é o governo de muitos por poucos. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
A história da democracia no Brasil, além de rica e complexa, é repleta de dificuldades, problemas, contradições, limitações. Os poderosos deste país já solaparam, poluíram e violentaram o espaço democrático nacional por inúmeras vezes. Dois períodos da História são exemplos notórios do desprezo pelo imenso valor e importância da democracia em nosso País: a implementação da Ditadura do Estado Novo (1937-1946), no contexto da Era Vargas, e a Ditadura Militar (1964-1985). Ambas causadoras de graves e amplas infelicitações para a Nação Brasileira. Afora a efetivação de golpes ferozes, como aconteceu durante o governo da presidente Dilma Rousseff. Crises institucionais e instabilidade política rodam nossa recente e ainda fragilizada democracia, deixando um sentimento de que se faz realmente necessário, cotidianamente, estarmos vigilantes para que a mesma e próprio Estado Democrático de Direito não desapareçam. Não sejam ultrajados, deturpados, e que não retorne o Estado Autoritário, que permeou de forma nefasta a sociedade brasileira.
Não é concebível nem aceitável socialmente a produção e reprodução de velhas práticas políticas aéticas, como o clientelismo, nepotismo, fisiologismo, existência de partidos políticos de aluguel, ameaças de golpes, construção de dezenas de projetos de lei, no contexto do Congresso Nacional, para liquidação dos direitos e conquistas realizados pela classe trabalhadora brasileira. Tudo isso somado tem afetado potencialmente a organização e o funcionamento da democracia no País.
Problematizando: a existência de profundas disparidades econômicas regionais e deletérias desigualdades sociais não se confrontam, não são incompatíveis com a própria noção de democracia? A grande chaga da corrupção que permeia parte das instituições nacionais não vilipendia, afronta, degrada, deforma, a democracia? A produção e proliferação de preconceitos e discriminações contra as minorias sociais, diariamente, no Brasil (mulheres, negros, índios, homossexuais, idosos, pessoas com deficiência) não representa um verdadeiro atentado ao que preconiza a Constituição Cidadã de 1988, e os fundamentos da própria democracia? Não aprofundam a crise da crença dos valores democráticos? As manifestações negacionistas, ridículas e alienantes do valor da democracia e de sua importância para a Nação Brasileira, feitas por algumas autoridades que integram a nossa República, não se constituem em péssimos exemplos, principalmente para nossas crianças, adolescentes e jovens?
A democracia burguesa liberal representativa que há no Brasil atual, não tem contribuído para perpetuação histórica das classes dominantes no poder? Como poderemos vivenciar a democracia participativa no contexto de uma crise democrática como a que atravessa o País atualmente? Sem mudanças e transformações profundas na natureza e lógica da selvageria capitalista no Brasil é possível termos, verdadeiramente, uma democracia que atenda as aspirações, interesses, e direitos da classe trabalhadora brasileira, das camadas populares? Aqueles e aquelas que preconizam na teoria a democracia, mas praticam violências, autoritarismos, preconceitos e discriminações, manipulações das massas, supressão dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, e defesa da impunidade para os torturadores e assassinos da Ditadura Militar (1964-1985) podem ser classificados e aceitos como democratas? O processo de globalização neoliberal, que também no Brasil tenta naturalizar a pobreza, a fome, as desigualdades sociais, conferindo ao mercado interno e, principalmente, ao externo, um super valor, um status de “semideus”, superior as necessidades e reivindicações de milhões de pessoas, não é incompatível com a real e bela noção de democracia? Aqueles e aquelas que no exercício da docência pensam que educar é fazer a simples transmissão de conhecimentos, a partir da utilização, fundamentalmente, da pedagogia tradicional, cultuando desprezo e negligência do necessário uso e vivência das pedagogias progressistas, estão contribuindo para o fortalecimento da democracia e cidadania no País?
Conforme SOUZA (2016), democracia é simbiose de teoria e prática, coerentes, harmônicas, fidedignas, para que seus objetivos possam ser desfrutados satisfatoriamente pela maioria. Nesse sentido, a autora afirma que:
Por estas e outras razões é que a democracia é sempre vista pela ótica do plano teórico e do plano real, a qual Bobbio (apud Streck) observa que a democracia, na verdade, é um conjunto depromessas não cumpridas(2014, p.116). Ou seja, o perfil democrático, igualitário e justo ainda não granjeou sua efetivação na praticidade, por três motivos: primeiro, devido a crescente complexidade social, o que muitas vezes leva a decisões tecnocráticas; segundo, a demanda para resolução de problemas se tornou maior do que a capacidade de resolvê-los, o que se fez necessário constituir-se de ferramentas burocráticas; e terceiro, o excesso de diligências superiores a quantidade de soluções disponíveis.
Ou seja, a operacionalização do fenômeno democrático não é tão simples de conceber e viabilizar na sua plenitude. Depende de múltiplas variáveis, principalmente numa sociedade como a nossa, de profunda estratificação social e emergência permanente de conflitos, muitos dos quais precariamente administrados ou governados adequadamente por múltiplos atores públicos. Acima de tudo, nas diversas esferas de governo.
Preliminarmente, retomando o núcleo desta temática, afirmo que a democracia e o País que queremos, merecemos e precisamos é a que favoreça e assegure, de forma plena, livre e de modo permanente, a: defesa ampla da soberania nacional; eliminação das disparidades econômicas regionais e imensas desigualdades sociais atuais; o respeito e a valorização integral dos Direitos Humanos, principalmente das minorias sociais; a tributação das grandes fortunas existentes no País; e a supressão de pelo menos 80% dos impostos que recaem diariamente sobre à vida dos que integram as camadas populares; trabalho digno e empregabilidade para todas as pessoas, que precisam viver com dignidade; distribuição verdadeira da renda e riqueza com a Nação Brasileira.
Além disso, interna e externamente, realizar a solução pacífica dos conflitos e a defesa da Paz, indispensáveis para uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária; o cumprimento integral da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, sem a produção de emendas que protagonizem o aumento dos processos de exclusão econômica, política, cultural e social; aperfeiçoamento dos canais legítimos e democráticos de participação da população (conselhos, fóruns, conferências, entre outros); a extinção de todo arcabouço jurídico herdado da Ditadura Militar (1964-1985), alguns, infelizmente, ainda em vigência no País, em pleno Século XXI; maiores e evolutivos investimentos em educação, saúde, cultura, segurança pública, desenvolvimento científico e tecnológico, a serem efetivados necessariamente pelo Estado.
Um dos grandes subsídios para balizar a democracia e o País que merecemos, precisamos e temos direito foi, sistematicamente, e de forma democrática, construído pelas seguintes representações: Brasil Debate, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas Para o Desenvolvimento, Fórum 21, Fundação Perseu Abramo, Le Monde Diplomatique Brasil, Plataforma Política Social e Rede Desenvolvimentista. Denominado “Por um Brasil justo e democrático. O Brasil que queremos: subsídios para um projeto de desenvolvimento nacional”, o documento, sinteticamente, está assim explicitado:
- Diretrizes para uma sociedade justa – 1. Defesa da constituição de 1988; 2. Preservar a inclusão social recente; 3. Enfrentar as desigualdades da renda e do patrimônio; 4. Enfrentar o déficit da oferta de serviços públicos e universalizar a cidadania social; II. Economia, crescimento e igualdade; 1. Macroeconomia, crescimento e combate à desigualdade; 2. Gestão macroeconômica: superar o “velho consenso”; 3. Lições da experiência internacional; 4. Recompor a capacidade de financiamento do estado; 5. Vetores para a retomada do crescimento; 6. O financiamento dos investimentos de longo prazo para o crescimento; 7. O papel dos Brics, da Unasul e do Mercosul; 8. Crise estrutural da indústria; 9. Sustentabilidade ambiental; III. Política, estado e democracia; 1. Reforma política; 2. Combate institucional e irrestrito à corrupção; 3. Democratização dos meios de comunicação; 4. Papel do estado; 5. Planejamento governamental e reconstrução das capacidades do estado; 6. Democratizar as relações no interior do pacto federativo.
Para conhecimento deste importante documento, sugerimos que o leitor o acesse integralmente, objetivando conferir a importância, atualidade e validade do mesmo: https://is.gd/ZdlTHf
A democracia correndo perigo, revelada através de vários manifestos
A democracia brasileira vigente se apresenta caracterizada por inúmeras fragilidades, debilidades e contradições, herdadas de uma transição ainda não consolidada. E mais recentemente tem o seu quadro institucional agravado pela adoção de posições e manifestações desenvolvidas pelo Poder Executivo Federal, principalmente representado pela sua autoridade máxima, o presidente da República, que não tem tido apreço pelos reais valores e fundamentos da democracia, preconizados pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Os retrocessos na área econômica, política, social, cultural e ambiental são visíveis, com a consequente destruição de conquistas feitas pelo povo brasileiro nos últimos 16 anos. Diante do exposto, várias representações da sociedade civil brasileira, esboçando um razoável processo de resistência ao torpedeamento da democracia, têm construído e difundido alguns manifestos para o esclarecimento e conscientização da Nação Brasileira. Entre os quais, destacamos:”Basta”, manifesto de juristas e advogados, com mais de 670 assinaturas, que reproduzimos a seguir:
Basta! O Brasil, suas instituições, seu povo não podem continuar a ser agredidos por alguém que, ungido democraticamente ao cargo de presidente da República, exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático, atentando, a um só tempo, contra os Poderes Legislativo e Judiciário, contra o Estado de Direito, contra a saúde dos brasileiros, agindo despudoradamente, à luz do dia, incapaz de demonstrar qualquer espírito cívico ou de compaixão para com o sofrimento de tantos. Basta! A Constituição Federal diz expressamente que são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação e contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais (artigo 85, incisos II e VII). Pois bem, o presidente da República faz de sua rotina um recorrente ataque aos Poderes da República, afronta-os sistematicamente. Agride de todas as formas os Poderes constitucionais das unidades da Federação, empenhados todos em salvar vidas. Descumpre leis e decisões judiciais diuturnamente porque, afinal, se intitula a própria Constituição. O país é jogado ao precipício de uma crise política quando já imerso no abismo de uma pandemia que encontra no Brasil seu ambiente mais favorável, mercê de uma ação genocida do presidente da República. Basta! Nós profissionais do direito, dos mais diferentes matizes políticos e ideológicos, os que vivem a primavera de suas carreiras, os que chegam ao outono de suas vidas profissionais, todos nós temos em comum a crença de queviver sob a égide do Direito é uma conquista civilizatória. Todos nós temos a firme convicção de que o Direito só tem sentido quando for promotor da justiça. Todos nós acreditamos que é preciso dar um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendendo cobrir este país. Não nos omitiremos. E temos a certeza de que os Poderes da República não se ausentarão. Cobraremos a responsabilidade de todos os que pactuam com essa situação, na forma da lei e do direito, sejam meios de comunicação, financiadores, provedores de redes sociais. Ideias contrárias ao Estado e ao Direito não podem mais ser aceitas. Sejamos intolerantes com os intolerantes!
O outro manifesto que destacamos chama-se “Democracia Sim”, citado, na íntegra logo abaixo. Ambos são reveladores da instabilidade política e da crise da democracia que envolve o País desde o golpe de 2016.
Pela Democracia, pelo Brasil. Somos diferentes. Temos trajetórias pessoais e públicas variadas. Votamos em pessoas e partidos diversos. Defendemos causas, ideias e projetos distintos para nosso país, muitas vezes antagônicos. Mas temos em comum o compromisso com a democracia. Com a liberdade, a convivência plural e o respeito mútuo. E acreditamos no Brasil. Um Brasil formado por todos os seus cidadãos, ético, pacífico, dinâmico, livre de intolerância, preconceito e discriminação. Como todos os brasileiros e brasileiras sabemos da profundidade dos desafios que nos convocam nesse momento. Mais além deles, do imperativo de superar o colapso do nosso sistema político, que está na raiz das crises múltiplas que vivemos nos últimos anos e que nos trazem ao presente de frustração e descrença. Mas sabemos também dos perigos de pretender responder a isso com concessões ao autoritarismo, à erosão das instituições democráticas ou à desconstrução da nossa herança humanista primordial. Podemos divergir intensamente sobre os rumos das políticas econômicas, sociais ou ambientais, a qualidade deste ou daquele ator político, o acerto do nosso sistema legal nos mais variados temas e dos processos e decisões judiciais para sua aplicação. Nisso, estamos no terreno da democracia, da disputa legítima de ideias e projetos no debate público. Quando, no entanto, nos deparamos com projetos que negam a existência de um passado autoritário no Brasil, flertam explicitamente com conceitos como a produção de nova Constituição sem delegação popular, a manipulação do número de juízes nas cortes superiores ou recurso a autogolpes presidenciais, acumulam declarações francamente xenofóbicas e discriminatórias contra setores diversos da sociedade, refutam textualmente o princípio da proteção de minorias contra o arbítrio e lamentam o fato das forças do Estado terem historicamente matado menos dissidentes do que deveriam, temos a consciência inequívoca de estarmos lidando com algo maior, e anterior a todo dissenso democrático. Conhecemos amplamente os resultados de processos históricos assim. Tivemos em Jânio e Collor outros pretensos heróis da pátria, aventureiros eleitos como supostos redentores da ética e da limpeza política, para nos levar ao desastre. Conhecemos 20 anos de sombras sob a ditadura, iniciados com o respaldo de não poucos atores na sociedade. Testemunhamos os ecos de experiências autoritárias pelo mundo, deflagradas pela expectativa de responder a crises ou superar impasses políticos, afundando seus países no isolamento, na violência e na ruína econômica. Nunca é demais lembrar, líderes fascistas, nazistas e diversos outros regimes autocráticos na história e no presente foram originalmente eleitos, com a promessa de resgatar a autoestima e a credibilidade de suas nações, antes de subordiná-las aos mais variados desmandos autoritários. Em momento de crise, é preciso ter a clareza máxima da responsabilidade histórica das escolhas que fazemos. Esta clareza nos move a esta manifestação conjunta, nesse momento do país. Para além de todas as diferenças, estivemos juntos na construção democrática no Brasil. E é preciso saber defendê-la assim agora. Prezamos a democracia. A democracia que provê abertura, inclusão e prosperidade aos povos que a cultivam com solidez no mundo. Que nos trouxe nos últimos 30 anos a estabilidade econômica, o início da superação de desigualdades históricas e a expansão sem precedentes da cidadania entre nós. Não são, certamente, poucos os desafios para avançar por dentro dela, mas sabemos ser sempre o único e mais promissor caminho, sem ovos de serpente ou ilusões armadas. Por isso, estamos preparados para estar juntos na sua defesa em qualquer situação, e nos reunimos aqui no chamado para que novas vozes possam convergir nisso. E para que possamos, na soma da nossa pluralidade e diversidade, refazer as bases da política e cidadania compartilhadas e retomar o curso da sociedade vibrante, plena e exitosa que precisamos e podemos ser.
O conteúdo destes dois manifestos, como todos os demais que foram construídos e difundidos para a Nação Brasileira nos últimos dois anos, por importantes instituições e movimentos sociais, são profundamente evidenciadores das preocupações e responsabilidades dos verdadeiros democratas deste país não apenas com os perigos e ameaças que rondam nossa frágil democracia, mas com os ataques frequentes a que a estão submetendo. Gerando, inclusive, protestos de natureza interna e externa. A instabilidade política é uma realidade que está instalada, e nos desafia, coletivamente, a construção de alternativas para superá-la.
Síntese da relação entre democracia e educação
Para uma compreensão mais aprofundada da relação histórico-crítica-social-dialógica entre democracia e educação, podemos encontrar elementos fecundos e fidedignos, bastante atuais, inclusive, contidos na obra do educador Paulo Freire, que produziu a Pedagogia da Libertação – explicitada em várias de suas obras, como “Pedagogia do Oprimido”, “Educação como Prática da Liberdade”, “Pedagogia da Esperança”, entre outras. Abaixo, um destes fragmentos de sua obra, citada e analisada por GASPARELLO (2013), revela a concepção de democracia, da qual compartilhamos plenamente e consideramos essencial para ser vivenciada pela sociedade brasileira.
A democracia não é uma doação de alguém, seja de um governante, de um partido político ou ainda de uma burocracia estatal. Uma utopia? Talvez. Mas não é possível “… sequer pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia, sem projeto. (…) Os sonhos são projetos pelos quais se luta”. Em toda a obra de Paulo Freire encontramos a defesa de uma ação libertadora, dialógica, em que: “Falar, por exemplo em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanização e negar os homens é uma mentira”. Ou seja, para Freire a tarefa de todo ser humano é ser mais, é se humanizar, é se tornar senhor de si, autônomo, consciente, sujeito da história. No entanto, ele não confunde autonomia com autossuficiência, pois sempre afirmou que ninguém se liberta sozinho, e sim que os homens se libertam em comunhão. Mais ainda: A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo, não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se. Freire indica, assim, o caráter processual da libertação e da democratização. Esse processo não pode apenas ser uma luta individual ou de um determinado grupo social, embora possa e/ ou deva começar por um certo grupo – o dos oprimidos, ou o das chamadas minorias – mas tem que ser um processo coletivo de libertação, de todos e para todos.
Como se vê, uma outra democracia é possível. Um outro mundo é possível! Lutemos por este mundo novo!
Referências:
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmem C. Varriale et al; rev. geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 12ª ed., 1999, p. 319-326.
BRASIL DEBATE, CENTRO INTERNACIONAL CELSO FURTADO DE POLÍTICAS PARA O DESENVOLVIMENTO, FÓRUM 21 et al. Por um Brasil justo e democrático. O Brasil que queremos: subsídios para um projeto de desenvolvimento nacional. Vol. 2. Disponível em: https://is.gd/ZdlTHf Acesso em: 16/08/2020
CHAUI, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Disponível em: https://is.gd/oYJnGA Acesso em: 16/08/2020
CONJUR.Basta! Disponível em: https://is.gd/2Pu7Gl Acesso em: 16/08/2020
DEMOCRACIA SIM. Democracia Sim: manifesto. Disponível em: https://is.gd/EvDXXt Acesso em: 16/08/2020
GALEANO, Eduardo.O livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. Editora L&PM, 2016.
GASPARELLO,Vânia Medeiros. A democratização como pedagogia da sociedade no pensamento de Paulo Freire. Disponível em: https://is.gd/E9BqQG Acesso em: 16/08/2020
SOUZA, Vanessa Santos de. Quem são “Os Ninguéns” de Eduardo Galeano no Estado Democrático de Direito. Disponível em:https://is.gd/b5tC0x Acesso em: 16/08/2020
Por: Giovanny de Sousa Lima