A essencialidade do Natal e seus múltiplos sentidos
“O verdadeiro Cristianismo rejeita e ideia de que alguns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus. Mais que comum dos dias, olhei o mais que pude os rostos dos pobres, gastos pela fome, esmagados pelas humilhações e neles descobri teu rosto, Cristo, ressuscitado.”
(Dom Hélder Câmara)
Vivenciar o Natal, coerentemente, no Brasil, país com mais de 500 anos de História, 215 milhões de habitantes, repleto de contrastes e profundas desigualdades econômicas e sociais, violências e violações de direitos – principalmente das camadas populares – gera uma exigência para todos nós cristãos. Se fazermos presentes, solidariamente, cooperativamente, na existência dos trabalhadores e trabalhadoras sem-terra, sem teto, sem escolas, sem emprego, sem saúde.
Até mesmo porque o Natalnão é uma natação no mar da indiferença. Não é uma correnteza de intolerâncias e alienação. Para ser representação fiel do Natal alicerçado no Cristianismo e trajetória de Jesus Cristo, necessariamente precisa ser realizado como genuína comunhão com os pobres, excluídos, oprimidos, explorados, injustiçados, geralmente invisibilizados pelas classes dominantes.
O Natal é uma celebração tão antiga como a própria história do Cristianismo, fecunda, importante e repleta da efervescência de valores, como: paz, humildade, compaixão, solidariedade, fraternidade, e devoção ao Menino Deus, que se revela eterno e inigualável na sua coerência e transcendentalidade gloriosa, sendo merecedor, portanto, que vivenciemos o Natal na sua plenitude, com base fidedigna em seus ensinamentos. Esta é uma celebração para além do circunscrito espaço das famílias dentro dos seus lares. O Natal não tem fronteiras! E é tão belo, essencial, significativo e necessário, que o chamado “Espírito Natalino” deveria perpassar os 365 dias de cada ano, na maior parte do mundo vigente, caracterizado, cotidianamente, por profundo desamor nas relações que são estabelecidas por milhares de pessoas nesta sociedade.
Para que serve mesmo o Natal?
Há inúmeros fatores e possibilidades para que possamos responder a estes aspectos inerentes a tal problematização,entre as quais nomeio:
- Para que possamos, como cristãos, ampliarmos as práticas sociais da caridade, fraternidade e solidariedade;
- Assegurarmos e desenvolvermos relações de comunhão com o próximo, através de ações concretas, de acolhimento, inclusão, humildade e colaboração;
- Produzirmos situações e condições propiciadoras do fortalecimento dos vínculos familiares e de nossas amizades em geral;
- Desenvolvermos, mais amplamente, a amizade, a paz e a compaixão;
- Celebramos e louvarmos o nascimento de Jesus Cristo, a Luz do Mundo, o Salvador da Humanidade, com integral respeito e conexão real com sua história e trajetória;
- Para não esquecermos toda a estrutura do ciclo natalino, fundada pelo Cristianismo;
- Celebramos o Natal como uma universal mensagem, de alegria, paz e esperança para todas as pessoas, em todas as regiões do mundo vigente;
- Para intensificarmos nossas reflexões sobre a nossa finitude, inacabamento, conquistas e realizações, obstáculos a serem transpostos no ano seguinte, e sobre nossa intencionalidade pedagógica;
- Retroalimentarmos a concepção do Natal como nascimento de Jesus Cristo, enquanto Salvador da Humanidade;
- Reforçar os rituais e costumes que são indicadores de identidade e pertencimento a um ou mais grupos sociais. O Natal é por excelência, também, uma festa social;
- Pensarmos sobre a essencialidade da manutenção e fortalecimento do Estado Democrático de Direito e da democracia, especialmente no Brasil e sobre a renovação dos nossos compromissos e responsabilidades com as lutas necessárias contra o racismo, xenofobia, homofobia, feminicídio, pedofilia, genocídio e etnocídio das civilizações indígenas, e contra todas as demais práticas nefastas de violências e violações dos Direitos Humanos, que em pleno Século XXI ainda ocorrem de forma acentuada na sociedade brasileira.
O sentido do Natal: múltiplos olhares
O Natal possui uma constituição complexa, reveladora, inclusive, de interpretações e manifestações diversas, e por que não dizer, até contraditórias, assumidas e reproduzidas por várias pessoas, que nesta época estão mais preocupadas em reforçar a mitificação de um boneco gerado pela Coca-Cola, denominado “Papai Noel”, e ganhar presentes, do que, verdadeiramente, fazer as fundamentais reverências ao grande homenageado desta época, que é Jesus Cristo.
Muito relevante acerca do verdadeiro sentido do Natal são os argumentos proclamados pelo santo padre, Papa Francisco, a saber:
Jesus, de fato, veio à terra na concretude de um povo para salvar todos os homens e mulheres, de todas as culturas e nacionalidades. Ele fez-se pequeno para que possamos acolhê-Lo e receber o dom da ternura de Deus.O abeto é sinal de Cristo, a árvore da vida, árvore à qual o homem não teve acesso por causa do pecado. Mas com o Natal, a vida divina se uniu à vida humana. A árvore de Natal, então, evoca o renascimento, o dom de Deus que se une ao homem para sempre, que nos dá a sua vida. As luzes do abeto recordam a luz de Jesus, a luz do amor que continua a brilhar nas noites do mundo.A árvore e o presépio apresentam-nos a atmosfera típica de Natal que faz parte do patrimônio das nossas comunidades: uma atmosfera de ternura, partilha e intimidade familiar. Não vamos viver um Natal falso e comercial! Deixemo-nos envolver pela proximidade de Deus, pela atmosfera natalícia que a arte, a música, as canções e as tradições trazem aos nossos corações.Estou grato por este presente, fruto do compromisso e da reflexão sobre o Natal, a festa da confiança e da esperança. A razão da nossa esperança é que Deus está conosco, Ele confia em nós e nunca se cansa de nós! Ele vem habitar com os homens, escolhe a terra como sua morada para estar conosco e assumir as realidades onde transcorremos os nossos dias. Isto é o que o nos ensina o presépio.(apud JOSÉ, 2021).
Tal concepção, traduz de maneira genuína a existência de Deus com a verdadeira Luz do Mundo e Salvador da Humanidade. Revela ainda, não apenas a glória de Jesus Cristo, como sua presença forte, bela, indestrutível, há mais de 2000 anos, na História da Humanidade e nas relações que são estabelecidas entre a maioria das pessoas do mundo.Envoltos pela atmosfera natalícia, para além do 25 de dezembro, acolhamos e incorporemos em nossas vidas os ensinamentos do príncipe da paz e do amor, que foi e continuará sendo: Jesus Cristo.
Não esqueçamos que procurar o sentido do Natal nos supermercados, bancos, shoppings, lojas, é um real contrassenso. O Natal, no seu sentido genuíno, jamais estará presente nas prateleiras, cofres e almoxarifados de tais locais. Vejamos ainda o que diz o Pr. Jovanir Lage sobre o sentido do Natal:
O verdadeiro sentido do Natal precisa estar além da superficialidade de nossa prática comum. Deve ser uma busca constante por elementos que sejam duradouros e permanentes na construção das relações humanas. O verdadeiro sentido do Natal deveria acontecer sempre como parte de nosso cotidiano e jamais como uma comemoração anual. Deveria estar fixado em nossa memória e celebrado em nossa vida como elemento intrínseco à nossa fé. Os desafios que se impõem para aqueles e aquelas que desejam a experiência de um Natal diferente, com sinais de amor, esperança e relações mais justas entre as pessoas, estão na prática de uma fé que busca o Novo mundo de Deus e que se esforça para que ele aconteça de forma permanente, e não somente uma vez a cada ano.
Natal é, pois, também, época de profunda aprendizagem. De novas apropriações de conhecimentos e saberes teológicos, humanistas e humanizadores. Para, inclusive, favorecer a pavimentação de nossa caminhada, alicerçada nos ensinamentos de Jesus Cristo. É tempo de fortalecermos a nossa fé, confiança, e esperança no Salvador da Humanidade. E de incorporarmos os seus ensinamentos a nossas práticas sociais diárias.
Um outro aspecto a destacar, não menos importante, são as características de celebração do Natal em momentos distintos da História do Brasil, havendo modificações culturais relativas a esta festa muito importante, e uma das principais, contidas no calendário religioso brasileiro. A diversidade cultural existente no território nacional produz feições diferenciadas do Natal, isto não implicando na sua deformação. Neste aspecto, MORAES (2013, p. 200-201) abordando o Natal e as representações imagéticas da família no Brasil, deixa claro:
O Natal é o resultado da adaptação feita pela Igreja Católica a uma festa pagã, denominada Saturnalia. Durante séculos as pessoas comemoravam no dia 25 de dezembro – do atual calendário gregoriano – o solstício de inverno no Hemisfério Norte, marcado pela noite mais longa e, geralmente, a mais fria do ano. Foi somente no ano 336, que o Papa Júlio I passou a comemorar o nascimento de Cristo neste dia, embora as fontes históricas evidenciem que não há provas concretas que permita precisá-lo. No Brasil, esta festa foi trazida pelos missionários portugueses, e aos poucos foram adaptando-se as estações climáticas e a geografia do país. Câmara Cascudo descreve o processo de mutação das festividades natalinas, desde as matrizes portuguesas até a fisionomia adotada no Brasil colônia: (…) Natal, uma consagração da família, coesão estreitamento dos lineares naturais, a ceia longa e farta, a fogueira crepitando ao ar livre no pátio da aldeia, imensa e acolhedora, aquecendo os devotos no frio dezembro português (…). Esses costumes vieram cedo para o Brasil (…). Para o Natal preparava-se a melhor e mais abundante das refeições, com prévias e pacientes aquisições saborosas. Era a noite dos presentes mútuos, as festas, na satisfação mais íntima e comunicante (…). O verão do dezembro brasileiro dispersou um pouco a reunião familiar. O peru anterídio substituiu o porco nas casas abastadas.
O texto acima deixa evidente aspectos relativos ao Natal no período agrário do Brasil. Tais características, elencadas anteriormente, conservaram a mesma fisionomia até o Século XIX, adquirindo peculiaridades gestadas pela diversidade de nossa geografia cultural. Afinal, somos uma nação multiétnica, multicultural, multirreligiosa. Natural, portanto, é que também as celebrações natalinas adquiram traços característicos inerentes ao nosso próprio processo de miscigenação. Infelizmente, em plena pós modernidade a dimensão religiosa do Natal vem “perdendo terreno” para a dimensão comercial desta mesma celebração.
Consolido estas breves reflexões deixando evidente o cartão de Natal produzido pelo escritor, teólogo, educador, humanista, Frei Betto, de uma importância extraordinária e atual para reflexão de todos nós, sobre o verdadeiro sentido do Natal e a postura que devemos ter e assumir diante de tão relevante acontecimento:
Feliz Natal a quem não planta corvos nas janelas da alma, nem embebe o coração de cicuta e ousa sair pelas ruas a transpirar bom humor.
Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas abissais da oração.
Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor e arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se recostam em leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.
Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa-dos-ventos e trazem no peito a saudade do futuro. Também aos que semeiam indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identificam a porta que os sentidos não vêem e a razão não alcança.
Feliz Natal a todos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a quem odeia.
Feliz Natal a quem acorda todas as manhãs a criança adormecida em si e, moleque, sai pelas esquinas quebrando convenções que só obrigam a quem carece de convicções. E aos artífices da alegria que no calor da dúvida dão linha à manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-los no lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da sobriedade. A quem resguarda-se em câmaras secretas para reaprender a gostar de si e, diante do espelho, descobre-se belo na face do próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.
Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que dormem acobertados pela compaixão. E a todos que contemplam ociosos o entardecer, observando como o Menino entra na boca da noite montado em seu monociclo solar.
Feliz Natal a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos. E a todos que destelham os tetos da ambição e edificam suas casas em torno da cozinha.
Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove uma despudorada liturgia eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.
Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades.
Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério e conhecem a geometria da quadratura do círculo.
Feliz Natal a quem se embebeda de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica e não receia pronunciar palavras onde a mentira costura bocas e enjaula consciências. E a todos que com o rosto lavado das maquiagens de Narciso dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.
Feliz Natal a todos que sabem voar sem exibir as asas e abrem caminhos com os próprios passos, inebriados pelos ecos de profundas nostalgias. E aos que decifram enigmas sem revelar inconfidências e, nus, abraçam epifanias sob cachoeiras de magnólias.
Feliz Natal aos que saboreiam alvíssaras nos bosques onde vicejam anjos barrocos e nadam suas gorduras deixando os cabelos brancos flutuarem sobre a saciedade de anos bem vividos. E a todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica e nos salões da Via Láctea bailam com os astros ao ritmo de siderais incertezas.
Feliz Natal também aos infelizes, aos tíbios e aos pusilânimes, aos que deixam a vida escorrer pelo ralo da mesquinhez e, no calor de seus apegos, vêem seus dias evaporar como o orvalho aquecido pelo alvorecer do verão. Queira Deus que renasçam com o Menino que se aconchega em corações desenhados na forma de presépios.
O cartão de Natal acima evidenciado, constitui-se numa mensagem abrangente, ética, humanista, filosófica, sociológica, teológica, pedagógica, de grandiosa significação, validade e importância para todos os seres humanos. Por não apenas retratar o real sentido do Natal, como também pelo fato de ser, verdadeiramente, uma pluralista e fecunda fonte de orientações muito bem sistematizadas, imprescindíveis e atuais. Me sinto totalmente contemplado com esta mensagem e espero que todos os leitores, possivelmente, também assumam a mesma opção ou entendimento. A todos um Feliz Natal, para construção de um outro mundo possível. Abraço fraterno!
Referências:
BETTO, Frei. Cartão de Natal.Disponível em: https://is.gd/KB15EXAcesso em: 03/12/2022.
CÂMARA, Dom Hélder. Frases de Dom Hélder Câmara. Disponível em: https://is.gd/OBVMuMAcesso em: 03/12/2022.
FRANCISCO, Papa apud JOSÉ, Silvonei. O Papa: não deixemos que o Natal seja poluído pelo consumismo e pela indiferença.Disponível em: https://is.gd/ySR9jhAcesso em: 03/12/2022.
JAGE, Jovanir. O sentido do Natal na concepção teológica. Disponível em:https://is.gd/MjB0E5Acesso em: 03/12/2022.
MORAES, V. de. (2013). A propaganda sazonal de Natal e as representações imagéticas da família no Brasil. Revista Ciências Humanas, 6(1).p. 200-201.Disponível em:https://is.gd/SqvtaEAcesso em: 03/12/2022.
*Escrito por: Giovanny de Sousa Lima