Concepções em torno da felicidade, sua importância e essencialidade

Por: Giovanny de Sousa Lima
Que a felicidade não dependa do tempo, nem da paisagem, nem da sorte, nem do dinheiro. Que ela possa vir com toda simplicidade, de dentro para fora, de cada um para todos.” (Carlos Drummond de Andrade)

Refletir sobre a felicidade foi uma práxis cultuada já na Antiga Grécia, por filósofos como Aristóteles, Sócrates, Platão, entre outros. Há mais de 2.500 anos tem se pensado sobre tão complexo, desafiador e essencial temática para todos os seres humanos, ao longo de parcela da história de humanidade. A felicidade constituiu-se e ainda se constitui em objeto de estudos da Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, e está também presente no contexto da Literatura e da Música, inclusive brasileira.

- PUBLICIDADE -

A felicidade para a Organização Mundial de Saúde (OMS) é o completo bem estar físico, mental e social. Estado quase impossível de alcançar na sua plenitude. Por isso mesmo, milhões de pessoas passam a vivenciar ansiedades, tensões e até depressão por não alcançá-la como almejam. Já outros, a buscam permanentemente, de modo até obsessivo, convertendo-se tal procura numa real patologia, digna de enfrentamento e superação.

Tantos outros tentam vivenciá-la fazendo uso costumeiro de métodos, técnicas, estratégias e ações destituídas de ética, geralmente representando tais práticas, violências e violação dos direitos e da dignidade dos outros. Um real contrassenso, pois a “felicidade que desfrutam” é inautêntica, corrupta, inescrupulosa, e nada mais é que um placebo para suas precaríssimas formas de conviverem consigo mesmo, com as outras pessoas, e estarem no mundo.

É preciso termos claro que não há fórmulas, roteiros, receitas, scripts, protocolos, mágicas para a produção e manifestação deste fenômeno estrutural, diversificado, variável, heterogêneo, e muito importante para ser vivenciado por todos os seres humanos, que é a felicidade. Ao argumentarmos sobre esta temática verifica-se sua riqueza, complexidade e conceito abstrato, podendo acontecer em qualquer fase da trajetória existencial dos indivíduos. Portanto, não há uma fase, um período pré-determinado da existência para que esta variável, fecundo, fluxo de energia e potência, possa impregnar corpos e mentes.

As tentativas equivocadas, construídas e difundidas pelos manuais de Psicologia de Auto Ajuda, fartamente evidenciados na contemporaneidade, com intuito de treinar, condicionar, programar indivíduos para serem felizes, nada mais são que poderosos e manipulatórios nichos de sofismas, retroalimentadores dos interesses do mercado capitalista. Inclusive, convertendo ridículos, em cada vez mais ridículos, e tolos, em cada vez mais tolos.

A Psicologia de Auto Ajuda não contribui para tornar os indivíduos, na pós modernidade, em seres humanos mais fortes, conscientes e capazes de conviver melhor consigo, com os outros e com o mundo. Pois, a existência real, concreta, é consubstanciada, irreversivelmente, tanto pela felicidade quanto pelas adversidades, angústias, medos e sofrimentos. E tais fatores não podem ser sonegados, mascarados, negligenciados. Pelo contrário, precisam ser enfrentados e superados. Negar tal fato é destituir a vida de sua natureza e/ou dinâmica, permeada pela imperfeição, finitude, inacabamento, inerente a todos os seres humanos. A vida não é, está sendo. O mundo não é, está sendo. O movimento é constante. Mudanças e transformações são inerentes à existência, e não é amparado na produção de “roteiros e modelos” de Psicologia de Auto Ajuda que seja possível alcançar a felicidade. Para que tenhamos possibilidades exequíveis, básicas, de vivenciar a felicidade, de maneira genuína e real, se faz necessário que aprendamos a desenvolver competências, habilidades, aptidões para sabermos viver. E saber viver dá trabalho, exige profundo autoconhecimento, uso sistematizado, equilibrado, altruísta, abrangente, contextualizado, humanizador, da razão.

Se a felicidade não é operacionalizada no passado, nem uma dádiva a ser curtida no tempo futuro, somente nos resta a vivenciá-la no presente, em suas múltiplas dimensões. Não há um padrão de felicidade, ou sua homogeneização em nenhum lugar do mundo, muito menos a possibilidade do indivíduo ou indivíduos serem felizes em qualquer parte deste planeta, em tempo integral. Ainda bem que existe esta impossibilidade verdadeira, inclusive para que os citados possam buscar reais sentidos para suas existências, conscientemente percebendo-se dotados de potencialidades, limitações e fragilidades.

A busca da felicidade exige foco, disciplina, escolhas corretas, opções dignas, autênticas, virtuosas, qualificadas, prudentes, éticas, encharcadas pelo fermento da paz, amor, fraternidade, solidariedade e respeito à dignidade da pessoa humana. Conhece-te mais e melhor e estabelecerás uma convivência mais madura, lúcida, perene, não apenas contigo, mas com os outros e o mundo no qual estás inserido. Conhecendo melhor tuas potencialidades e limitações, encontrarás os instrumentos, meios, para construção de tua felicidade, bem como terás mais possibilidades, percebo eu, de auxiliar, cooperar, favorecer, potencialmente, o desenvolvimento dos teus semelhantes.

Problematizando a concepção de felicidade

Por que a felicidade tem sido tão enfatizada, inclusive pela Filosofia, há mais de 2.000 anos? Quais as razões para impermanência da felicidade na minha vida, na sua, e na de outros seres humanos? A felicidade é uma construção e manifestação que ocorre dentro do ser humano. Portanto, um componente subjetivo, histórico, cultural, psicológico e social, ou a decorrência de fatores externos que a motivam? Seria mesmo a felicidade algo individual, pessoal e intransferível? É a felicidade um componente histórico, cultural e social, inerente a própria história dos seres humanos? Afinal, o que é mesmo a felicidade?

É possível sermos plenamente felizes, ou podemos ter apenas alguns momentos de felicidade? Onde mesmo se encontra esta tal felicidade: nas riquezas, no prestígio social, na conquista do poder, da fama e do sucesso daqueles que os alcançam? Se alguém estiver sozinho em um determinado lugar, por longo período de tempo, pode sentir-se feliz?

A felicidade pode ser facilmente compartilhada? É possível ser realmente feliz no contexto de um país como milhares de pessoas engessadas, aprisionadas, vitimadas por múltiplos processos de exclusões? A felicidade se vivenciada desta forma não seria uma felicidade egoísta? Desassistida de trabalho, moradia adequada, lazer, segurança, liberdade, alimentação, terra, e precário acesso à educação, saúde e transporte, as pessoas realmente conseguem ser felizes?

Não há uma crescente escassez de felicidade na contemporaneidade, resultante de guerras, conflitos tribais, conflitos sociais, existência de grupos terroristas e terrorismo de Estado, ações de organizações criminosas dos mais diversos tipos, mudanças climáticas, evolução da produção de vírus, pandemias, fake news, pobreza e fome, que envolve milhares de pessoas no mundo. A felicidade se restringe a ter dinheiro, a ter trabalho, a ter família? Sem a efetiva supressão das necessidades fundamentais do corpo e mente dos seres humanos, estes possuirão condições reais de desfrutar da felicidade?

Compartilha-se da concepção de que todas as pessoas têm o direito de serem felizes. Fundamental mesmo é ser feliz! Nesse sentido, a felicidade não é, muito menos pode ser, em sociedades hierarquizadas como a nossa, um privilégio acessível apenas a uma classe social. Felicidade não é patrimônio de uma classe social, de uma etnia, de um gênero, de uma cultura. Importante também destacar que a constelação de desejos, cultuada pela maioria dos seres humanos, é muito abrangente, heterogênea, complexa. E significativa parcela destes, muitas vezes não realizados, são fatores produtores de infelicidade. O que nos leva a compreender a real impossibilidade de se abordar felicidade, negligenciando-se a infelicidade. Se a felicidade está plasmada pela superação das necessidades e realização dos desejos, é pertinente que todos nós sejamos prudentes, estabelecendo as justas medidas para que os possamos produzir e manifestar, adequadamente.

A governança lúcida deste componente em toda a trajetória existencial é preponderante para evitar sofrimentos a si e aos outros. Por outro lado, verifica-se que também se faz relevante a definição, sistematizada, de objetivos claros que almejemos alcançar. Capacitar-se ao máximo para operacionaliza-los com eficiência, eficácia, justiça, generosidade, amorosidade, numa combinação de opções e ações amparadas com consciência entre aquilo que definiu Sigmund Freud, como o princípio do prazer e o princípio da realidade. Tal decisão, possivelmente, pode gerar situações, possibilidades, para emergência da felicidade.

Como também relações humanas com pessoas as quais possam contribuir para o aperfeiçoamento de nossas qualidades e virtudes. São fatores importantes para pavimentar os horizontes da felicidade. Relações interpessoais, plenas de afetuosidade, amorosidade, ética, respeito ao outro, são essenciais. Relações interpessoais onde você possa ensinar, mas também estar aberto a novas, potentes e fidedignas aprendizagens, seja no âmbito da família, da escola, rua, fazenda, em quaisquer espaços no qual estejas inserido. Há sempre possibilidade de aprendizagem e pessoas que possam acrescentar, agregar, favorecer, o fortalecimento do teu patrimônio educacional, cultural, emocional. Logo, o compartilhamento real de conhecimentos e saberes é também outro atributo muito importante para produção e vivência da felicidade.

A felicidade, então, encontra-se, verdadeiramente, no sentir-pensar-fazer que cada ser humano faz de si mesmo, e menos no que consegue alcançar com os bens materiais, ou em seus ávidos processos de consumo ou sucesso. Deriva também, inquestionavelmente, de um sentimento de satisfação em relação ao modo como vive e as possibilidades de sentir alegria, contentamento, prazer. Quanto mais os sujeitos são livres, serão menos objetos de influências e expectativas dos outros. A felicidade de um não se materializa a partir de expectativas e sonhos que estão sendo vivenciados pelos outros. É fundamental que o indivíduo tenha autonomia para decidir o que é melhor, mais integro, mais significativo, para corporificar, qualitativamente, a sua existência como um todo.

A luta constante para ser, se sobrepondo ao ter, é imperativa, essencial para balizar moralmente uma existência digna. Felicidade é, por excelência, portanto, também a celebração da amizade, a vivência da cooperação e solidariedade com os explorados e oprimidos. É, por excelência, a celebração do amor e sua comunhão, bem como do erotismo derivado deste. Amar e ser amado, verdadeiramente, e manter uma relação fecunda e amorosa com o transcendente, constituem-se em combustíveis essenciais para uma existência feliz.

No seu livro “Ética”, o filósofo Baruch Espinosa já disse com propriedade: “a felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refrearmos as paixões, mas, ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões”.

_______________
Giovanny de Sousa Lima — Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); especialista em Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, também pela UFPB; psicólogo educacional; pedagogo; professor do Ensino Médio e do Ensino Superior em instituições da rede privada de João Pessoa, nas últimas três décadas; e ex-professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).Também é escritor e radialista.