Reflexões sobre a contemporaneidade: produção, manifestação e seus impactos

Giovanny de Sousa Lima
“É preciso buscar um pensamento que surja do precário, da insuficiência das categorias conceituais e que ainda se interesse pela dor dos outros”.(Edson Luiz André de Sousa)

A contemporaneidade é um tema extremamente rico, complexo e abrangente, pelo fato de sua constituição ser repleta de características. Rupturas com velhos paradigmas que a retroalimentam num ritmo cada vez mais evolutivo. Obviamente, novos paradigmas são sistematizados e difundidos, como por exemplo: os relativos, recentemente, que dizem respeito à bioética, biotecnologias, inteligência artificial, metaverso, apenas para citar alguns. Não há um conceito que possamos afirmar como padrão, para elucidar tão importante etapa ou época histórica.

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Problematizações básicas

O que é, na verdade, a contemporaneidade? O que é ser contemporâneo? Quem são nossos contemporâneos mais autênticos e fidedignos? O que fazer no contexto da contemporaneidade, seja no mundo do trabalho, ou com nosso tempo ocioso? Como lidar com as características da contemporaneidade? Quais mudanças estão acontecendo na educação, cultura, ciência, e mundo do trabalho na contemporaneidade? Quais as principais influências da contemporaneidade na existência da humanidade, hoje? Quais os impactos da contemporaneidade na saúde física e mental das pessoas? Como se manifesta tal fenômeno no âmbito do lazer, da comunicação, turismo, segurança e consumo na vida de milhões de pessoas?

Situamos tais problematizações no sentido de despertar e mobilizar os estimados leitores(as) a pensar, de forma mais ampla, sobre esta temática, e se acharem pertinente, responder de modo gradativo tais questionamentos num belo e fecundo exercício de diálogo consigo e também, quiçá, com outras pessoas. Ao mesmo tempo, considera-se importante afirmar para os setores acima citados que é impraticável darmos conta de todas as respostas a estes questionamentos formulados, no contexto deste modesto artigo, não sendo, inclusive, nossa pretensão, de assim proceder.

Aproximações conceituais

Segundo AGAMBEN (p. 59, 2009), estabelecendo um processo de abordagem sobre o que é a contemporaneidade, assim evidencia:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. AGAMBEN (p. 59, 2009).

Tal formulação contém, simultaneamente, componentes de objetividade, implicitamente relativos ao passado, e os elementos que o constituíram, bem como apresenta em seu conteúdo aspectos subjetivos, que nos remetem ao necessário compromisso e responsabilidade de estudarmos e compreendermos o que na verdade é a contemporaneidade, o que ela faz conosco e o que dela fazemos.  Portanto, não é contraproducente, muito menos confortável, que estejamos imersos totalmente no turbilhão de fatores, causas, consequências, influências diretas e indiretas, derivadas da contemporaneidade, de modo alienado, sem uma compreensão multidimensional, pluralista, multifacetada e real, de tal fenômeno.

Proceder análise sobre a contemporaneidade não é tarefa fácil, simplória, em decorrência da complexidade, mudanças e transformações que são operacionalizadas nesta época onde estamos todos inseridos. O surgimento de rupturas com velhos paradigmas e a eclosão de novos, termina por nos prender ao tempo presente, sem uma conexão adequada com o riquíssimo patrimônio educacional, cultural, econômico, político, científico, representado pelo legado da humanidade, construído historicamente.

Conforme HENNIGEN (p. 191, 2007), estabelecendo uma correlação entre contemporaneidade e as novas perspectivas para produção de conhecimento, é bastante esclarecedor ao afirmar que:

A expressão contemporaneidade aparece de forma recorrente nas produções acadêmicas das ciências humanas e sociais, sendo empregada para sinalizar que a pesquisa ou escrito refere-se a uma situação ou processo que está acontecendo no nosso tempo e que este possui uma especificidade importante: é marcado por transformações em variadas esferas, o que lhe dá contornos complexos. Contudo, o que se encontra, muitas vezes, é apenas a mera alusão ao termo, sem uma reflexão mais aprofundada. HENNIGEN (p. 191, 2007).

Apesar das produções sistematizadas das ciências humanas e sociais sobre tal época, os avanços para o seu desvelamento acentuado ainda não aconteceram. Todavia, isso não implicando que ainda na primeira metade deste século não esteja materializada em sua plenitude. O próprio processo de desenvolvimento da interdisciplinaridade, da transdisciplinaridade, e das necessárias conexões entre os diversos campos do conhecimento científico, poderão apresentar uma resposta satisfatória a tão relevante demanda. Ainda segundo HENNIGEN(p. 195-196, 2007), a análise social da contemporaneidade tornou-se mais complexa, surgiram diferentes perspectivas teóricas para compreender as mudanças observadas no cenário mundial.

[…] a análise social e cultural da contemporaneidade tornou-se mais complexa, surgiram diferentes perspectivas teóricas para compreender as mudanças observadas no cenário mundial. Tais mudanças perpassam todo o tecido social: transformaçõestecnológicas – principalmente nos sistemas de informação e comunicação; novas formas das relações entre capital e trabalho; transformações nas relações políticas e na institucionalidade; em nossa experiência de tempo e espaço; nas lutas dos novos movimentos sociais; e no modo como nos constituímos subjetivamente. Agregando contribuições de diferentes autores/as, uma descrição geral das rupturas inclui a descrença em relação às metanarrativas e aos significados universais e transcendentais, a crise das hierarquias – de conhecimentos, de culturas -, a crise da representação e o predomínio dos simulacros, a passagem do logocentrismo para o iconocentrismo, a fragmentação e descentramento da identidade, entre outros aspectos.HENNIGEN (p. 195-196, 2007).

Como se percebe, por esta importante afirmação a contemporaneidade é multidimensional, pluralista, heterogênea, desde sua produção até suas manifestações e impactos sobre as mais distintas nações e culturas. As ciências humanas e sociais, gradativamente, vão desenvolvendo processos de investigação e esclarecimentos fidedignos relativos aos componentes, fatos, características e influências da contemporaneidade no planeta e na humanidade. E isso, sem sombra de dúvida, é de grande importância, validade e utilidade.

A contemporaneidade não deixa de ser parte constitutiva, derivada de grandes acontecimentos, que corporificaram o processo histórico, e permeiam também o mundo atual, entre os quais podem ser destacados: a Revolução Francesa e seus paradigmas; Revolução Inglesa; Revolução Industrial; processos de urbanização; Primeira e Segunda Guerras Mundiais; Guerra Fria; Corrida Espacial (1957-1975); pós-Guerra Fria; formação de blocos econômicos em vários continentes; modificações ocorridas na organização e funcionamento dos sistemas capitalista e socialista, este último impactado após a dissolução e fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); edificação de vários organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), G7; revolução informacional; revolução científica e tecnológica; ecodesenvolvimento; Internet e suas redes sociais; globalização neoliberal; organização, atuação e expansão de empresas multinacionais e transnacionais; emergência de conglomerados financeiros.

Não é correto desconsiderar também que a denominada contemporaneidade é uma decorrência da própria evolução educacional, cultural, econômica, política e científica da humanidade. É, preponderantemente, um produto da revolução científica e tecnológica. Assim percebida, fica mais evidente a compreensão de sua dinâmica multifacetada e suas metamorfoses, mutações e contradições, geradora, inclusive, de mudanças e transformações no modo de sentir-pensar-fazer educativo, cultural e científico.

Cumpre-nos apontar como componentes problemáticos, verdadeiros dilemas e desafios da contemporaneidade, a serem superados: os evolutivos fluxos migratórios (geralmente subprodutos de conflitos éticos, guerras, pobreza acentuada, fome, epidemias, autoritarismo, violações de Direitos Humanos); mudanças climáticas profundamente impactantes; concentração de renda e riqueza exorbitante, amoral, perversa, em mãos de menos de 3% da população mundial; desproporcional, desigual distribuição, e falta de acesso a alimentos e bens duráveis à maioria da população do planeta; tentativas crescentes e nefastas de homogeneização cultural, em várias regiões do mundo; evolução e expansão, infelizmente, das organizações criminosas em vários países; gigantesca e institucionalizada especulação financeira (circulação sem controle do capital volátil, não gerador da melhoria de vida da maioria da população do planeta); descomunal produção e circulação de informações, a maior e mais diversificada já verificada, comprovadamente, na história mundial; manutenção de imensos e permanentes investimentos financeiros para o fortalecimento da indústria bélica dos países ricos, que também com tal fato ampliam sua dominação sobre os países semiperiféricos e periféricos; disparidades econômicas elevadas entre o Norte Desenvolvido e o Sul Pobre, no plano mundial; desaparecimento, extinção de dezenas de espécies animais e vegetais; poluição constante e crescente dos oceanos; aquecimento global do planeta, alimentado pelo uso dos combustíveis fósseis; derretimento das geleiras, como por exemplo está acontecendo com as geleiras flutuantes da Groelândia; elevação do nível do mar, ameaçando cidades costeiras; culto a selvageria dos “fundamentos” do “Deus Mercado”, um dos núcleos do sistema capitalista, ao invés da garantia de estímulos, investimentos, políticas públicas de Estado, preconizadoras do cooperativismo, economia solidária, agricultura familiar, ecodesenvolvimento, reforma agrária, produção e expansão de fontes energéticas, geradoras de energia limpa; produção e disseminação de gigantes e rotineiras fake News, através de inúmeras redes sociais, em várias regiões do mundo; manifestações de xenofobia e fundamentalismo religioso, acima de tudo, no âmbito de alguns países do continente asiático, africano, na América do Norte e, principalmente, na Europa Ocidental; tentativas execráveis e criminosas de destruição da democracia e do Estado Democrático de Direito como ocorreu no Brasil em 08 de janeiro de 2023, nos Estados Unidos da América, após a eleição de John Biden,e maisrecentemente, em janeiro de 2024, no Equador; avanço das modificações nas relações de trabalho e da legislação trabalhista, de modo quase generalizado; desaparecimento de algumas profissões e emergência de novas modalidades profissionais, de maneira abrupta, com grandes impactos na ordem econômica e com a produção, geralmente, de enormes prejuízos para milhões de trabalhadores(as); a robotização, mecanização e terceirização no mundo do trabalho, seja na cidade ou no campo, tem produzido o avança do desemprego em inúmeros países.

É obvio que tudo isso gera impactos, desdobramentos, influências, em milhões de corpos, mentes, existências cotidianas, relações sociais que se processam no globo terrestre. Todos estamos imersos na contemporaneidade. Por isso mesmo, é nosso dever, crescentemente, nos apropriarmos dos seus componentes, características, aspectos gerais e específicos. Inclusive, para balizarmos nossas existências em múltiplos aspectos. Urge que se construa um processo em escala local, regional, nacional e mundial, de coesão social democrática, retroalimentados por princípios éticos, emancipatórios, realmente ensejadores da libertação material e intelectual dos excluídos, oprimidos, explorados e injustiçados. A justiça e a dignidade para todos, necessariamente, precisa ser construída e fortalecida, cotidianamente, em todo o nosso planeta.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos – Editora da Unochapecó, 2009, p. 59. Disponível em: https://x.gd/naCSUAcesso em: 11/01/2024.

HENNIGEN, Inês. A contemporaneidade e as novas perspectivas para a produção de conhecimentos. Cadernos de Educação – FaE/PPGE/UFPel. Pelotas: [s.n.], julho/dezembro 2007, p. 191-196. Disponível em: https://x.gd/vsVtpAcesso em: 11/01/2024.

SOUSA, Edson Luiz André de. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007, p. 13. Disponível em: https://x.gd/sHJf6Acesso em: 11/01/2024.

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Giovanny de Sousa Lima — Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); especialista em Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, também pela UFPB; psicólogo educacional; pedagogo; professor do Ensino Médio e do Ensino Superior em instituições da rede privada de João Pessoa, nas últimas três décadas; e ex-professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).Também é escritor e radialista.