Yanomamis: uma tragédia anunciada e a ser superada

Giovanny de Sousa Lima — Colunista
Por: Giovanny de Sousa Lima

Yanomani e nós (Pacto de vida)

- PUBLICIDADE -

 

Ter de resisti à dor, à dor.

Sem comprender por que à dor, à dor.

Ter de suportar viver à dor, à dor.

E sem merecer à dor, à dor.

 

Se é esse o meu destino, quem é o algoz que o traçou.

Quem me contaminou.

Quem me doou a dor.

 

Homem não existe para ser só animal.

A sua história é mais que corporal.

Abre o sentido para ter, a liberdade.

Com todo mundo que é seu igual,

e solidário.

Pensará…

Amará…

Sonhará…

Saberá…

Que a felicidade da cidade não tem que o mato matar.

 

Ai a dor vai nos unir,

O fim da dor começa é assim,

É o filho que não para de crescer,

A fruta que vai madurar,

Aquela mão, aquela paz, morena, é aquele olhar

Que é sempre, verde verdejá

É aquele gesto humano,

É aquela voz humana,

É aquele amor humano, que chega e diz que vai ficar.

 

(Milton Nascimento e Fernando Rocha Brant)

 

“Yanomani e nós” é uma poesia gerada por Milton Nascimento e Fernando Rocha Brant, que foi transformada em canção, possui a dinâmica e capacidade de retratar a tragédia passada e presente que envolve os Yanomanis. Constitui-se ao mesmo tempo em anúncio e denúncia fundamental. Em esclarecimento do processo de resistência e novas perspectivas de existência para esta civilização indígena. O canto “Yanomani e nós” é um canto de dor e amor. Contudo, potencialmente de esperança no enfrentamento e superação das adversidades profundas e reais que continuam impactando diretamente a sobrevivência e existência dos Yanomamis.

Quem são os Yanomamis?

Os Yanomamis são seres humanos detentores de cultura, historicamente excelentes guardiães da biodiversidade da Floresta Amazônica. Possuem uma cultura bastante rica e suas moradas congregam várias famílias que moram juntas. Suas casas são, geralmente, em formato de cone ou retangular. Casas coletivas, plurifamiliares, abrigam esta população. Tal civilização indígena tem a sua existência e integridade de suas terras ameaçada de modo diverso, amplo, principalmente pelo garimpo e ações dos garimpeiros ilegais.

A violência e violação dos direitos dos Yanomamis tem sido verificada nos últimas cinco décadas e, principalmente, nos anos de 2018 a 2022, período do desgoverno bolsonarista, com repercussão até internacional. Devido ao avanço da malária e outras doenças do subdesenvolvimento; contaminação dos rios por mercúrio; estupros de mulheres indígenas; roubo de recursos minerais das terras indígenas; agravamento da fome devido à acentuda escassês de caça e pesca; e assassinatos recorrentes de indivíduos Yanomamis.

Não é concebível ou aceitável socialmente que, sendo o Brasil detentor de uma das legislações ambientais mais sistematizadas, fecundas e atualizadas do mundo, tendo inclusive participado, nas últimas décadas, das mais importantes conferências, congressos, fóruns, tratados internacionais ambientais, verificados, acima de tudo, na segunda metada do Século XX e sequenciados no Século XXI, continue mostrando-se ineficiente e ineficaz no combate sistemático aos garimpos e garimpeiros ilegais e demais criminosos que atuam na Amazônia, destruindo a biodiversidade da floresta.

A proteção da flora, fauna, recursos hídricos, minerais e vida dos Yanomamis precisa ser feita de modo abrangente, verdadeira, urgente, inadiável! Inclusive, através de articulações e ações efetivas entre os entesda República Federativa do Brasil: governos federal, estaduais e municipais, para que seja assegurada simultâneamente a proteção da Floresta Amazônica e os direitos dos Yanomamis e demais povos indígenas.

Neste País detentor de mais de 500 anos de História, ao longo dessa trajetória já foram, infelizmente, eliminados, vítimas do etnocídio e genocídio, mais de três milhões e 500 mil indígenas, sendo a colonização de exploração, desencdeada pelos portugueses nos três primeiros séculos de nossa história, a maior promotora do extermínio de muitas civilizações indígenas, inclusive no Sertão e Alto Sertão Paraibano, como ocorreu com os indígenas Cariris e Tarairiús.

Outros componentes inerentes a estrutura organizacional e funcional da Civilização Yanomami podem ser evidenciados através da percepção, formas de atuação e relação bele e difenciada deles com o que, costumeiramente, chamamos de natureza. A forma com que se relacionam com a citada é profundamente humanizada e repleta de múltiplos significados, inclusive espirituais, corforme está explícito abaixo:

Para os Yanomami, ”urihi”, a terra-floresta, não é um mero espaço inerte de exploração econômica (o que chamamos de “natureza”) Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Como tal, se encontra hoje ameaçada pela predação cega dos brancos. Na visão do líder Davi Kopenawa Yanomami: A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.”

Vê-se que na concepção Yanomami não há lugar para o individualismo, egocentrismo, ambição, práticas predatórias contra a natureza, imediatismo, consumismo, desprezo com a biodiversidade que os envolve. A relação, pois, com a floresta e a terra é estabelecida, potencialmente, com nível espiritual, com respeito integral as suas potencialidades e limitações, fato que os chamados “modernos e civilizados” não levam em consideração ao realizarem suas práticas sociais.

É importante destacar que a Civilização Yanomamipor ter quase 1000 anos de História permanecendo a maioria dos seus membros completamente isolados até a década de 40, tanto no âmbito da Amazônia Brasileira quanto da Amazônia Venezuelana. O processo de etnocídio e genocídio de tais setores passa, efetivamente, a ocorrer após a supressão do processo de isolamento de tal civilização, o que ocorre, basicamente, a sua revelia, em decorrência, acima de tudo, das riquezas presentes no local onde habitavam e habitam. Portanto, o martírio imposto aos Yanomamis não é novo, mesmo com a demarcação de suas terras no âmbito da Floresta Amazônica, em território brasileiro.

No Brasil, a população yanomami era de 19.338 pessoas, repartidas em 228 comunidades (Sesai, 2011). A Terra Indígena Yanomami, que cobre 9.664.975 hectares (96.650 km²) de floresta tropical é reconhecida por sua alta relevância em termo de proteção da biodiversidade amazônica e foi homologada por um decreto presidencial em 25 de maio de 1992. O etnônimo “Yanomami” foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra yanõmami que, na expressão yanõmami thëpë, significa “seres humanos”. Essa expressão se opõe às categorias yaro (animais de caça) e yai (seres invisíveis ou sem nome), mas também a napë (inimigo, estrangeiro, “branco”). Os Yanomami remetem sua origem à copulação do demiurgo Omama com a filha do monstro aquático Tëpërësiki, dono das plantas cultivadas. A Omama é atribuída a origem das regras da sociedade e da cultura yanomami atual, bem como a criação dos espíritos auxiliares dos pajés: os ”xapiripë ”(ou ”hekurapë”). O filho de Omama foi o primeiro xamã. O irmão ciumento e malvado de Omama, Yoasi, é a origem da morte e dos males do mundo.

A expressão Yanomami, construída pelos antropólogos, constitui-se em verdadeiro atestado de reconhecimento efetivo à cultura genuína, autêntica, diversificada, e com forte conteúdo espiritual, retroalimentada através dos séculos por tal civilização.

Recortes de uma tragédia anunciada

O ano de 2023 no Brasil eclodiu com a profusão de dezenas de reportagens e centenas de imagens dos Yanomamis veiculadas pelos meios de comunicação de massa, revelando: avanço da destruição da Floresta Amazônica, contaminação dos seus rios, desaparecimento de várias espécies vegetais e animais, agravamento da Covid, malária e outras patologias não menos graves em inúmeras comunidades Yanomamis, bem como de corpos esqueléticos de crianças, jovens, mulheres e idosos, vítimas da fome por dezenas de dias. Um panorama realmente desolador e que, de algum modo, já vinha sendo objeto de estudos, investigações, debates, e ações desenvolvidas por estudiosos, pesquisadores de universidades, representantes de movimentos sociais, como fica atestado abaixo:

Os impactos das invasões e projetos de desenvolvimento na saúde e vida do povo Yanomami têm sido registrados há muitas décadas. Nos anos 1970, quando da construção da Perimetral Norte, doenças infecciosas mataram entre 22% a 50% das populações das aldeias atingidas pelas obras (Ramos, 1993). Entre 1987 e 1989, a invasão de 20.000 garimpeiros nos territórios Yanomami, gerou epidemias de malária e outras doenças, que causaram a morte de pelo menos 15% da população Yanomami. Atualmente, lideranças Yanomami e sua entidade representativa, a Hutukara Associação Yanomami, têm reiterado diversas denúncias de invasão de milhares de garimpeiros e suas consequências sociais e sanitárias; sendo que, recentemente, nota da Abrasco, de maio de 2021, apontou os seguintes dados alarmantes: a desnutrição crônica atinge cerca de 80% das crianças menores de cinco anos, e a taxa de mortalidade infantil é 3,7 vezes maior que em demais grupos indígenas e 7,8 vezes maior que para crianças não indígenas; dados do SIVEP-Malária apontam que a malária afetou aproximadamente 64% da população em 2019 e 67% em 2020, se não considerarmos reinfecções no mesmo indivíduo. “É ainda importante destacar que 34% da malária no DSEI Yanomami é causada por Plasmodium falciparum, espécie associada tanto a casos mais graves quanto à falta de medidas de controle, diagnóstico e tratamento apropriadas.” (Abrasco, 2021: 10-11); o nível de contaminação de mercúrio, avaliado em 19 aldeias distribuídas na T.I. Yanomami das regiões Paapiú, Waikás Ye’kwana e Waikás Aracaçá, revelou altas prevalências que variaram de 6,7% em Paapiú, passando por 27,7% na região Waikás Ye’kwana, atingindo 92,3% das pessoas na região de Waikás Aracaçá” (Basta e Hacon, 2016). Atualmente esses níveis provavelmente estão ainda mais elevados, pois são essas regiões as mais diretamente afetadas pela atual ocupação e exploração garimpeira na porção oriental da Terra Indígena Yanomami; no contexto da pandemia da Covid-19, a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana denunciou uma série de problemas em relação ao enfrentamento da pandemia, como a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e testes, a elevada transmissão entre os trabalhadores da Casa de Saúde do Índio (CASAI) e do DSEI Yanomami, a falta de acesso a medidas de prevenção e à assistência, além da distribuição ampla de medicamentos sem comprovada eficácia para prevenção e tratamento da Covid-19.

A existência fidedigna de tais dados, sistematizados pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Associação Brasileira de Antropologia (ABA), são pronfudamente reveladores da ineficiência e ineficácia das instituições integrantes do Estado Brasileiro, no que concerne à defesa e proteção da Floresta Amazônica e, principalmente, dos direitos  dos Yanomamis. A implementação concreta de garimpos ilegais nesta região tem, realmente, provocado consequências sociais e sanitárias gigantescas, afetando, potencialmente, quase todas as comunidades Yanomamis.

Em pleno Século XXI a violência e violação dos direitos das civilizações indígenas, como os Yanomamis, continua acontecendo, ratificada pela perversa lógica do modelo capitalista vigente: expansionista, predatório, concentrador de renda e riqueza, gerador de criminosas exclusões, agravador de desigualdades sociais, fortalecido pela omissão e até cumplicidade de algumas autoridades do Governo Federal, principalmente no período entre 2018 e 2022, e do Governo Estadual de Roraima, quanto ao martírio imposto aos Yanomamis e demais povos indígenas que vivem dentro da Floresta Amazônica.

Tal realidade deriva ainda de organizações criminosas que atuam no contexto da Floresta Amazônica, associadas à milicianos e garimpeiros ilegais, que exploram o ouro e a cassiterita na região citada. A grave situação vivenciada pelos Yanomamis é resultado ainda da fragilidade das instituições e órgãos fiscalizadores do meio ambiente; diminutos investimentos do Estado na defesa, proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas; e manutenção da impunidade dos criminosos, assassinos, exploradores, estupradores das mulheres indígenas, e ladrões de suas terras e riquezas.

Não é possível a continuidade da impunidade para tais criminosos e os demais, afeitos à derrubada da floresta, contaminação dos rios com toneladas de mercúrio e produção de impactos ambientais e sociais terríveis no âmbito da Amazônia. As punições devem ser amplas, justas, profundas e imeditas, para todos que atentaram e atentam contra a Floresta Amazônica e seus indígenas.

Por sua vez, no contexto do importante trabalho acadêmico efetivado pelos educadores-pesquidores SANTOS e NETO (2016, p. 174-175) o período de 1964 a 1988 foi caracterizado por profundas práticas de autoritarismo, repressão, violência institucionalizada contra os indígenas, assim expresso:

Monitoramento constante durante os três primeiros anos (pelo menos) da chamada Nova República, presidida por José Sarney, e infiltração de agentes de inteligência nas reuniões públicas e fechadas da CNBB, das Dioceses, das Igrejas e do Conselho Indigenista Missionário; Campanha difamatória contra autoridades religiosas; Tentativas de enquadramento de agentes religiosos na Lei de Estrangeiros e expulsão do território nacional; Campanha difamatória contra a CNBB e o Cimi orquestrada pelo Conselho de Segurança Nacional (presidido pelo general Bayma Dennys), pelo jornal O Estado de S. Paulo e pela empresa Paranapanema; Omissão do Estado na saúde indígena e proibição do funcionamento de entidades de assistência à saúde indígena independentes do Estado; Prisão, tortura e assassinato de indígenas e cristãos; Utilização de armamentos militares contra indígenas; Lançamento de produtos químicos por parte do Parasar (Aeronáutica) em aldeias, provocando a morte de dezenas de indígenas; Desaparecimento de nove aldeias indígenas em áreas controladas pela Paranapanema; Invasão de terras indígenas por parte do empresário do garimpo José Altino, utilizando-se de roupas e armamento militares; Empresas paramilitares, comandadas por oficiais militares, com tarefas de “limpeza da selva”, com total impunidade e ao arrepio da lei. A Sacopã foi a mais notória entre elas; Ocupantes de cargos eletivos (deputados, senadores e governadores) e de funções públicas na Funai, no Departamento de Polícia Federal (DPF), nas Forças Armadas, entre outras instituições, atuando abertamente, a serviço de mineradoras, construtoras e fazendeiros, na cruzada anti-indígenas e anticristãos comprometidos com a causa daqueles.SANTOS e NETO (2016, p. 174-175)

Verica-se, claramente, que os projetos e programas econômicos estabelecidos durante o período da Ditadura Militar, associados a cobiça das riquezas existentes nas terras indígenas, manifestada por empresários gananciosos, apenas contribuiu para o agravamento do processo de etnocício e genocídio dos Yanomamis e outras civilizações indígenas existentes na região. Acrescentece-se que os setores religiosos, principalmente da Igreja Católica, em Roraima, integrantes do Conselho Indigenista Missionário, foram objetos de intensa repressão porque assumiram a defesa justa e necessária da causa indígena. O martírio que se abate sobre os Yanomamis em 2023, portanto, não é novo.

A situação gravíssima envolvendo os povos indígenas terminou resultando num conjunto de recomendações, feito pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), há vários anos, assim delineada por SANTOS e NETO (2016, p. 176-178):

Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo  esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando à instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos; Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas, visando à colonização de suas terras durante o período investigado, constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena; Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos praticadas contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo; Promoção de campanhas nacionais de informação à população sobre a importância do respeito aos direitos dos povos indígenas, garantidos pela Constituição, e sobre as graves violações de direitos ocorridas no período de investigação da CNV, considerando que a desinformação da população brasileira facilita a perpetuação das violações descritas no presente relatório; Inclusão da temática das “graves violações de direitos humanos ocorridas contra os povos indígenas entre 1946-1988” no currículo oficial da rede de ensino, conforme o que determina a Lei n.º 11.645/2008; Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc.; Reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas no período investigado pela CNV, visando ampla divulgação ao público; Reconhecimento pela Comissão de Anistia, enquanto “atos de exceção” e/ou criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como aos demais casos citados neste relatório; Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei n.º 10.559/2002, de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas; Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva; Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988; Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como forma de reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não observação dos direitos indígenas na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados entre 1946 e 1988.SANTOS e NETO (2016, p. 176-178)

Apesar da extraordinária importância, validade e pertinência de tais recomendações, a  maioria das mencionadas, até a presente data, não foram materializadas pelo Estado e governos da República Federativa do Brasil. E não foi por falta de lutas dos movimentos sociais e ONGs indigenistas. Senão, por falta de decisão política dos que gerenciam e/ou comandam o próprio Estado Brasileiro.

Todavia, espera-se que a conjuntura econômica política e social seja modificada, transformada, inclusive com a reestruturação do Ministério do Meio Ambiente e as instiuições que o compõem em todo o território nacional, durante o vigente governo do presidente Luiz Inácio da Silva. Sinalizações neste sentido já começam  a ser desenvolvidas, fazendo o Brasil retornar ao cenário internacional como um dos protagonistas da defesa e proteção do meio ambiente e dos indígenas, o que se constitui em fato louvável.

O garimpo, com o (in)consequente uso de toneladas de mercúrio e sua disseminação pelos rios da Amazônia, constitui-se, além de prática criminosa, uma gigantesca irracionalidade. Jamais será fator de desenvolvimento a presença de mais de 30 mil garimpeiros na região, destruindo a floresta, explorando inadequadamente suas riquezas, e afetando ferozmente a vida de centenas de indígenas, moradores da localidade. O importante sistema de monitoramente do garimpo ilegal da Terra Yanomami resultou na produção do relatório “Yanomami sobre ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, reproduzido parcialmente abaixo:

Em 2021 a destruição provocada pelo garimpo na TIY cresceu 46% em relação a 2020. Houve um incremento anual de 1.038 hectares, atingindo um total acumulado de 3.272 hectares. Esse é o maior crescimento observado desde que iniciamos o nosso monitoramento em 2018, e, possivelmente, a maior taxa anual desde a demarcação da TIY em 1992. […] o garimpo não apenas tem crescido em área, mas também tem se espalhado para novas regiões do território yanomami. Neste documento utilizamos como recorte regional os limites dos polos-base do Distrito Sanitário, pois isso permite correlacionar os dados de área impactada com o perfil epidemiológico de cada região. Dos 37 polos existentes, 18 possuem registro de algum desmatamento relacionado ao garimpo. Caso incluíssemos nessa lista os polos-base que não têm registro de desmatamento observável no satélite, mas possuem informações sobre a atuação de balsas ou de pequenos grupos de garimpeiros, esse conjunto se ampliaria para 24 polos-base (incluindo Maturacá, Baixo Catrimani, Inambú e Ajarani). Note-se que o garimpo identificável por sensoriamento remoto localiza-se basicamente na porção roraimense da TIY. Quase a metade da área degradada está concentrada em Waikás, região localizada no rio Uraricoera. Kayanau, que está na confluência dos rios Couto Magalhães e Mucajaí, é a segunda zona com a maior concentração de cicatrizes, com pouco mais de 20% do total da área degradada, seguida por Homoxi, na fronteira com a Venezuela, com 12%. Com exceção das regiões Surucucus, Missão Catrimani e Uraricoera, todas as demais apresentaram um crescimento importante de um ano para o outro. E, mesmo as regiões que acusaram uma variação negativa, a redução esteve mais associada ao refinamento do mapeamento (quando o sobrevoo e melhores imagens disponíveis corrigem erros de interpretação) do que a uma real recuperação da paisagem. Entre as regiões que apresentaram o maior incremento estão, respectivamente: Waikás, Homoxi, Kayanau e Xitei. Sendo que esta última apresentou um crescimento relativo de mais de 1000%. Em relação ao impacto direto do garimpo sobre os recursos hídricos, os principais rios e Igarapés afetados atualmente são: rio Uraricoera, rio Parima, Igarapé Inajá, Igarapé Surucucus, rio Mucajaí, rio Couto Magalhães, rio Apiaú, rio Novo, rio Catrimani e rio Lobo d’Almada. […] somando os diferentes trechos e considerando a relação do rio com os seus afluentes, verificamos que a bacia do rio Mucajaí é a bacia hidrográfica atualmente mais afetada, concentrando no seu leito 180 km de destruição (em dois trechos), mais 50 km do rio Couto Magalhães, e, por que não, 30 km da cabeceira do rio Apiaú (que deságua no Mucajaí fora da TIY) e 10 km do Rio Novo, que é um afluente do Apiaú. A bacia hidrográfica do Uraricoera, por sua vez, não fica muito atrás do Mucajaí no quesito destruição, além dos 150 km no leito do seu médio curso, somam-se os trechos impactos no Parima (35 Km), Igarapé Inajá (10 km) e Igarapé Surucucus (4 km).

Tais informações, resumidamente evidenciadas, são imprescindíveis para comprovar a dinâmica nefasta das práticas de garimpo e suas consequências sociais, sanitárias e ambientais na Amazônia, bem como para se contrapor aos céticos e negacionistas que preconizam como positiva a exploração da riqueza amazônica de modo predatório. Para esses, especialmentedizemos: o Estado Democrático de Direito, a democracia, a Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 1988), e o Poder Judiciário, continuarão existindo, cada vez mais fortes, democráticos, atuantes, com o suporte efetivo da imensa maioria da Nação Brasileira. Basta de destruição da Floresta Amazônica e de violência e violação dos povos indígenas!

No contexto do presente relatório, “Yanomami sobre ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, verificam-se ainda pluralistas evidências do verdadeiro caos e destruição provocado pelo garimpo na região amazônica, com o efetivo surgimento de consequências para a hidrografia, fauna, flora, solo e, acima de tudo, para a existência dos povos indígenas, assim reveladas:

Um dos efeitos diretos mais dramáticos observados com o continuado avanço da exploração da TIY pelo garimpo é o aumento das ameaças (em frequência e grau) à segurança das diferentes comunidades e lideranças que se opõem publicamente à atividade na Terra Indígena. À medida que os núcleos garimpeiros ilegais se proliferam e crescem nas diferentes regiões da TIY, as comunidades vizinhas sentem a perda do “controle” sobre o seu espaço de vida. Isto porque a insegurança os dissuade de circular pela região, seja em razão de ameaças explícitas de garimpeiros contra suas vidas, seja em razão da simples presença hostil de não-indígenas. É recorrente a queixa de lideranças sobre a intensa circulação de garimpeiros fortemente armados e as consequentes intimidações para que os indígenas coadunem com as condições impostas pelos invasores. Em muitos relatos, os membros das comunidades disseram sofrer com a restrição a seu livre trânsito na Terra Indígena, deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça, e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário. Ao lado das graves ameaças à vida e à segurança pessoal dos indígenas, a verificada intensificação do garimpo ilegal na TIY representa uma ofensa ao direito dos povos indígenas à posse permanente de sua terra tradicional, ao usufruto exclusivo das mesmas, e à manutenção e reprodução de seus modos de vida tradicional. Isto é, na medida em que as comunidades afetadas, na prática, percebem que têm reduzidas as áreas que podem aproveitar livremente para suas atividades cotidianas. A isto, associam-se outras graves violações de direitos fundamentais dos povos afetados. Por exemplo, a lesão aos direitos ao meio ambiente adequado e ao acesso à água potável, resultado da acumulação dos impactos socioambientais constatados neste relatório. Também, graves restrições ao exercício do direito à alimentação adequada pelas comunidades indígenas, na medida em que a referida restrição ao aproveitamento de seu território tradicional impede o pleno funcionamento do seu sistema produtivo. Merecem destaque os prejuízos causados pelo garimpo ilegal ao direito à saúde dos indígenas. Como demonstrado, a atividade garimpeira ilegal está associada à maior incidência de doenças infectocontagiosas entre as comunidades indígenas, em especial a malária. Ademais, vale lembrar que a atividade garimpeira está diretamente associada à contaminação de mercúrio, com danos irreversíveis à sua saúde das pessoas das comunidades afetadas. Há notícias de uma maior incidência de doenças neurológicas entre recém-nascidos nas comunidades Yanomami, mas estas não passaram por um diagnóstico de contaminação de mercúrio apesar de haver orientação normativa nesse sentido. Além disso, a situação de insegurança generalizada imposta pelo aumento da circulação de garimpeiros armados nas diferentes regiões da TIY tem causado transtornos ao atendimento à saúde às comunidades indígenas, com o total abandono de postos de saúde em alguns casos (a exemplo de Palimiu) e, inclusive, a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo (a exemplo de Homoxi). Também é comum a queixa do desvio de medicamentos reservados para os indígenas para atendimento de garimpeiros. Esses fatores potencializam os danos que resultam da desestruturação e má-gestão do atendimento à saúde indígena realizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. Durante a realização do II Fórum de Lideranças da TIY, o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami constatou que a saúde Yanomami entrou em colapso.

O garimpo ilegal altera, corrompe, adultera, cada vez mais, o espaço geoeconômico-político-ambiental da Amazônia. Sua expansão, resultante de simbioses com organizações criminosas, acima de tudo nos últimos quatro anos, aprofundou o drama e tragédia dos Yanomamis, tanto do ponto de vista material quanto espiritual. Fato, claramente, não aceito pelo atual Governo Federal, por todas as reais forças democráticas do País, e pelos movimentos sociais, que tendem a unificar esforços e ações na defesa, proteção e promoção dos direitos dos indigenas, inclusive assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil, assim expressos no documento “Manifesto em defesa dos povos indígenas brasileiros”:

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. § 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”FFLCH / USP (2021, p. 2)

Considerações finais

A defesa, proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas precisa ser efetivamente materializada no cotidiano nacional para que as atrocidades contra tais povos tenham um fim, com todos os seus promotores, efetivamente, submetidos aos rigores da lei, seus fundamentos, princípios e penalidades. As iniciativas ou empreendimentos realizados pelo atual Governo Federal devem ser ampliados, fortalecidos, aprimorados, tanto para defesa e proteção da Floresta Amazônica quanto para assegurar a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas. Sou parte integrante da Nação Brasileira que acredita ser isto, perfeitamente, possível e inadiável.

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA e ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. O Governo Federal deve retirar os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami e Ye’kwana e implantar um consistente Plano Emergencial. [S.l. : s.n.]Disponível em:https://is.gd/QSURgm Acesso em: 26/02/2023.

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Manifesto em defesa dos povos indígenas brasileiros. São Paulo, 26 de agosto de 2021, p. 2. [s.n.]Disponível em:https://is.gd/NjEPYm Acesso em: 26/02/2023.

NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando Rocha. Yanomami e nós (Pacto de vida). Álbum Txai. [s.l.]:CBS, 1990.Disponível em:https://is.gd/EGfXslAcesso em: 26/02/2023.

SANTOS, Adriana Gomes e NETO, Antônio Fernandes. Genocídio indígena e perseguição à Igreja Católica em Roraima: a ação e a omissão do Estado Brasileiro diante das graves violações aos direitos humanos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016 (p. 174-178. Disponível em: https://is.gd/kHJq79Acesso em: 26/02/2023.

SISTEMA DE MONITORAMENTO DO GARIMPO ILEGAL DA TI YANOMAMI. Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo.[S.l. : s.n.]2022.Disponível em: https://is.gd/5jpXyx Acesso em: 26/02/2023.

URIHIPË, Kami Yamaki. Povos Indígenas no Brasil: Yanomami.[S.l. : s.n.]Disponível em: https://is.gd/kHJq79Acesso em: 26/02/2023.

 

Giovanny de Sousa LimaMestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); especialista em Educação em Direitos Humanos e para os Direitos Humanos, também pela UFPB; psicólogo educacional; pedagogo; professor do Ensino Médio e do Ensino Superior em instituições da rede privada de João Pessoa, nas últimas três décadas; e ex-professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).Também é escritor e radialista.